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Kotor, 31 de Agosto de 2007

Entre mil quatrocentos e vinte e mil setecentos e noventa e sete, a cidade de Kotor foi um dos portos mais importantes da Serena República de Veneza. Localizada na parte mais resguardada de um enorme golfo com o mesmo nome da cidade, Kotor impressiona pela sua localização na maior fiorde do sul da Europa, pela sua gigante fortaleza que, voando pela montanha a cima, se torna numa enorme recompensa para quem, de pernas cansadas, se aventura a subir pelos mil e quinhentos degraus a cima, e pela bela cidade antiga que, mesmo contendo uma arquitectura semelhante à de Split e de Dubrovnik, oferece ao turista cansado de outros como ele um surpreendente sossego.



Tínhamos chegado ao mais novo país do mundo, a República do Montenegro. No final das duas horas da viagem de autocarro entre Dubrovnik e Kotor, o mar entra por terra dentro, as montanhas teimam em não desaparecer, e eis que se forma perante os meus olhos a mais estranha ria que alguma vez vi. Montanhas com uma altura incalculavelmente belas, terminam o seu salto das alturas num mar azul que em tudo se assemelha a um enorme lago, uma vez que não há qualquer horizonte à vista. O mar faz uma curva à direita, desliza suavemente para a esquerda, divide-se em dois e em três novos mares, a água não deixa de ser azul, as montanhas não conseguem deixar de ser altas. Ao fundo, uma pequena vila é subtilmente esmagada pela harmoniosa montanha verde que dela parece florescer. Uma grande fortaleza ergue-se para o infinito da escarpa, desde o chão de porcelana que é esta baía no mar adriático. Olá Kotor.



Para não desfazer a fama que tenho vindo a dar a esta costa Adriática e, já agora, a todos os Balcãs, uma vez mais fomos recebidos por uma multidão extravagantemente pacífica de velhinhos e velhinhas que com a mais calma das forças nos tenta alugar um apartamento. Desdentado seboso escolhido, tendo em conta o stock de Euros que tínhamos na carteira e a proximidade relativa do centro (e digo relativa, porque aqui tudo é perto do centro), fomos gentilmente recebidos pela esposa do senhor, pelos quadros de homens estranhos com turbantes e longas barbas expostos na parede, os chinelos aos pés da cama, os baldes do lixo em forma de coração e os arranjos de flores com enfeites natalícios. Uma delícia. Através de gestos multilingues, o simpático desdentado lá nos levou a comer barato, e que boa escolha se mostrou! A carta era como um enorme repasto encriptado, uma vez que o nosso Serbio se resumia aos úteis «Olá», «Adeus», «Obrigado» e «Queres ser minha amiguinha?». Depois de fazer entender ao empregado que queria algo bom e barato, esperei, esfomeado, pelo que me viria a ser servido. Um aparte então, sobre a comida do Interrailer.



A início, a minha ideia sobre comida centrava-se em comprar comida barata no super-mercado e come-la quando me desse fome. Com o – literal – andar da carruagem, veio a tornar-se impraticável resistir aos pratos típicos de cada país. Em França tivemos Crepes, em Itália pizzas e gelados sem fim, na Eslovénia o descrito veado com frutos silvestres e rolos de queijo, na Croácia os grelhados e o risoto de lulas e mais alguns viriam ainda. Em todo o lado, o hábito de nos trazerem imediatamente a bebida – vulgo, cerveja – e só passado meia-hora o prato principal, delicadamente acompanhado por pão sem manteiga, era um lugar-comum. No Montenegro, num belo restaurante enfeitado por uma Máfia Sérvia um tanto ou quanto assustadora, toalhas pouco lavadas e milhares de plantas e quadros da equipa de futebol local a enfeitar a pequena parede, o ritual repetiu-se.



Meia hora e duas cervejas depois, a comida apareceu, com o devido cesto do pão, como se do pai da noiva se tratasse, a acompanha-la lado a lado. No entanto, neste restaurante, a acompanhar os bifes recheados com queijo e bacon e umas deliciosas batatas fritas, tivemos um convidado especial. Como bom Português que sou, ao ver entrar um solitário e alto mochileiro pelo nosso inóspito restaurante dentro, dei-lhe as boas vindas com um “Hey! Interrailer!”. Ora, estava enganado, não era, mas era melhor.



Diariamente conversávamos com pessoas, mesmo neste dia já tinha vindo o caminho todo a conversar com dois polacos que estavam a aprender albanês e com uma montenegrina que julgava que eu falava polaco. E no entanto, não houve no interrail inteiro ninguém por quem tenha criado tamanha admiração, não pelas incríveis façanhas, que não são, mas por aquilo que representa para alguém que está fora de casa há duas semanas conhecer alguém como este Croata de vinte e dois anos. Há três anos atrás, e com dezanove anos, portanto, o Leo tinha-se chateado com o seu curso de Agricultura na Universidade de Zagreb. Com algum dinheiro na mão, decidiu-se a comprar um voo para Barcelona, sem saber muito bem o que lá fazer. A partir daí, fez-se Homem Estátua, percorreu Espanha, Portugal, França, Itália, Marrocos, Mauritânea e muito mais, e ganhou, pelo menos, uma tarde inteira de histórias para contar, onde se escondem vidas em Squads de cento e cinquenta pessoas em Barcelona, com creche e hospital incluídos, ou noutras mais pequenas, algures – e para gáudio da Ana – em Mem-Martins. Ganha à volta de 60 euros por dia, durante as três horas e meia que trabalha e, diz ele, não ganha mais porque não gosta de ficar em sítios com muita gente. Diz que o Jimmy, o tal guitarrista de Dubrovnik, ganhava por dia 250 euros. Agora, depois de ter vivido tudo o que nunca imaginou, decidiu-se a matricular novamente na Universidade, desta vez em Turismo. Viveu em casas abandonadas em Portugal com outros como ele, lavou pratos na Mauritânea, mas diz que está com medo daquilo que vai encontrar nas salas de aula em Zagreb. Foi uma tarde indescritível, entre cervejas e histórias do arco-da-velha.



Mas a enorme fiorde estava atrás de nós, e antes do anoitecer, munidos de uns incríveis e resistentes chinelos, fizemo-nos à montanha. Dizem que são mil e quinhentos degraus, mas mil anos de história fazem com que haja mil e quinhentos para subir e outros tantos para imaginar, enquanto tentamos subir por onde podemos e agarrar ao que não devemos. Uma boa meia-hora depois, exaustos estávamos no topo do mundo. Lá em baixo, um enorme barco cruzeiro estava atracado ao pequeno porto de Kotor. Os acanhados telhados laranja convidavam-nos a um copo na zona antiga durante a noite. A ravina era inacreditável. O mar que aparecia entre as montanhas fazia-nos lembrar que não estávamos no meio de um enorme continente, mas sim a pouco mais do que cinco quilómetros da costa. Foi revigurante, chegar ao topo da bela fortaleza, património da UNESCO.



De noite, por entre muitos apagões que assolam toda o Montenegro durante o Verão (e aqui é bom relembrar que o País é País há oito meses), deslumbramo-nos primeiro com os refinados iates que atracam naquele porto no meio de nenhures e, depois, pelas belas ruas de Kotor, sempre com a imponente fiorde – agora iluminada – a não deixar ninguém esquecer a verdadeira razão de estarmos aqui. Duas horas depois, a repousar na cama de um qualquer desdentado, um sorriso do tamanho do meu mundo teimava em não me deixar.

3 Comments:

Blogger Helena Borges said...

Vai actualizando o teu blog e contando as tuas histórias =) Assim pelo menos sei que estás vivo e de boa saude LOol

Sabes que há aqui pessoas com saudades, seu insensível??? =P

October 1, 2007 at 8:08 PM  
Blogger éme said...

escrever "baia de kotor" no google-images dá destas coisas...

vou conhecer essas montanhas para a semana. a ver se me ajeito com elas.

boas viagens :)
marta

August 1, 2008 at 6:17 PM  
Anonymous Anonymous said...

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