#12
Uma cidade massacrada pelo exército jugoslavo. Uma cidade massacrada pelo conflito do próprio povo. Uma cidade que serviu de símbolo para o mundo das consequências da guerra dos Balcãs. Uma cidade reconstruída do nada. Um rio de águas cristalinas. Uma ponte como símbolo da união entre os povos. Uma zona antiga apaixonante. Um povo a que não se fica indiferente. Catorze postais, porque não tinha mais moradas. Catorze saudades e catorze recordações para sempre de que ali, naquele momento, não precisava de mais nada para me sentir afortunado. Era uma vez Mostar.

Depois de uma noite de peripécias engraçadas, que começou com uma necessidade exasperante de beber água e terminou com o recepcionista nocturno do hotel a bater de forma insistente à porta do nosso quarto enquanto dizia “Hey Ronaldo, I give you water!”, despertamos às cinco da manhã para apanharmos o primeiro comboio para Mostar, onde iríamos passar o dia antes de seguirmos para Budapeste.

A cidade de Mostar simboliza a guerra na Bósnia. Primeiro, vieram os Jugoslavos, cegos de raiva por uma Bósnia que gritava pela independência, pela sua própria identidade. Depois veio o conflito interno, inexistente durante séculos afim, quando os Bósnios Croatas decidiram desencadear uma guerra pela posse da cidade, até ali partilhada com a população Muçulmana. A igreja ortodoxa de um lado do rio. Os pacatos islamitas do outro. Uma cidade histórica destruída. Para assinalar a realidade da divisão provocada pelo conflito, a Stari Most, a magnífica e imponente ponte cã que dá o nome à cidade, é destruída. Milhares de pessoas como eu e tu, mortas.

Passaram-se mais de dez anos desde o fim do conflito. Há três, a ponte foi restituída ao seu lugar divino. A cidade respira alegria, uma enorme excitação por todos os estrangeiros que a visitam e uma incrível serenidade por parte dos que lá vivem – uma vez mais, ortodoxos e muçulmanos convivem diariamente numa harmonia intrigante.

Mas o dia começou logo de forma ternurenta, com uma viagem fantástica de hora e meia entre Sarajevo e Mostar. De volta aos comboios, depois de um interregno de alguns dias, aprontei-me a meter conversa com os dois Bósnios que partilhavam connosco a cabine. A ideia não podia ter sido melhor. Ela devia rondar os trinta e cinco, ele os cinquenta. Nenhum deles falava inglês e, para dificultar ainda mais as coisas, ela era surda. No entanto, confesso que foram as duas pessoas que mais prazer me deu conhecer em todo o Interrail.

Sempre com muitos gestos, sons e palavras bósnias, portuguesas, alemãs e inglesas pelo meio, passamos noventa minutos fantásticos, com pessoas que viveram a guerra por dentro, que dela falavam com um brilho nos olhos, que quase nos obrigaram a ir a Medugorje, um local de culto católico semelhante a Fátima, que queriam saber coisas sobre Portugal, que sorriam abertamente quando pensavam no nosso futebol, que em pouco tempo pareciam ser já os nossos melhores amigos. Tenho a fotografia de ambos aqui no quarto, conforta-me saber que há pessoas assim.

Depois veio o dia passado em Mostar. A cidade foi completamente destruída pela guerra, pouco ou nada sobrando. E no entanto, apenas se pode ver um prédio com marcas sérias da guerra. Tudo o resto foi reconstruído, com uma nota especial para a deslumbrante zona antiga, ao estilo islâmico de Sarajevo mas sempre contornando o pequeno rio Neretva que imperturbavelmente nos leva até a Stari Most. E é da bela Stari Most, a trinta metros de altura das águas geladas do Neretva, que os Mostari saltam a troco de Euros e Marcos Convertíveis, num espectáculo que assusta qualquer um e que nos deixa a divagar sobre a pouca coragem ou o enorme bom senso que a maior parte de nós possui.

Foi desta pequena cidade que mandei postais a todos aqueles que me tinham dado a sua morada. Onde um grande hotel se enche de balas mas onde tudo o resto parece ter sido feito de encomenda para o nosso pequeno paraíso na terra, onde falei com um homem que foi brutalmente massacrado num campo de concentração sérvio mas que não perdeu nunca o enorme sorriso com que me contou a sua história, onde o pequeno Neretva e as belas casas de telhados baixos nos embalam para sonhos de um país que me vai deixar com mais saudades que qualquer outro que visitei neste interrail. Foi daqui que matei um pouco das saudades que tinha de todos, imaginando que convosco conversava. Espero que não se esqueçam porquê.
3 Comments:
Nao tinhas mais moradas? Tretas... agr tens e nao fazes nada com elas... =|
eu já devia ter ido para a cama há bastante tempo. amanhã o dia rasga cedinho e promete agitação. sei que vou estar cansada, sei que tenho imenso trabalho, sei que quero imenso fazer esse trabalho, sei que durante o dia inteiro pessoas se vão encostar à minha secretária ou sentar-se na pontinha da minha cadeira e perguntar "então?" e eu vou responder "desta vez nenhum taxista me assaltou" e depois vamo-nos rir muito durante muitos minutos. e sei que devia ir para a cama. mas não sei. há aquele torpor de domingo à noite. aquela estranheza do recomeçar depois de ter estado fora. aquela pontinha de preguiça. os belle and sebastian embalaram-me. a minha mão direita sobre o rato fez o resto: fui divagando por entre palavras que não as minhas, clicando aqui e acolá. palavra de honra que gostava de saber refazer o caminho até ao teu algo-teu, mas não sei. juro. sei que fui lendo, linha atrás de linha, seguindo as tuas letras por aí fora, e de repente dei conta que me tinha esquecido que devia ir para a cama. andei por aí a deslumbrar-me com os teus preto e brancos magníficos (os locais, os anónimos, a luz em todo o lado, a expressões, a ternura com que captas a ana...) e a reconhecer-me nas tuas palavras. eu também ando há anos a adiar um interrail - e as desculpas vão mergulhando em campos mais e mais complexos. e eu também descobri muito de mim lá fora. o meu cantinho ficava um pouco mais a norte, quase encostadinho ao círculo polar. e não foi em erasmus, foi já depois da licenciatura (tivesse eu ido mais cedo e mais cedo me libertaria de medos e pressões e aprenderia a caminhar tão melhor...). mas o resto é quase o mesmo. ou, ao ler-te, eu pensei que fosse: esse ratinho da descoberta, de fora para dentro.
[não sei porquê tenho esta estranha sensação que estou a dizer uma série de palermices mais ou menos intímas a um perfeito desconhecido só porque um monte de palavras num monitor tocaram uma ou outra corda sensível. portanto o melhor era efectivamente calar-me e ir para a cama. lembro-me dos olhos de um amigo meu que sorri e encolhe os ombros sempre que eu me volto para um anónimo num qualquer café e comento "tens umas mãos espantosas". ou qualquer coisa do género. se ele estivesse aqui agora e visse este discurso escrito completamente inusitado, ia sorrir, encolher os ombros, olhar para o chão e dizer baixinho: "tu não existes. a sério que não devias ser tão... oh, deixa lá, esquece." no fundo, eu concordo com ele. por isso vou ali não-existir para a cama. boa sorte. vive devagarinho - há momentos que ficam para sempre.]
o efeito das minhas palavras fez ricochete na tua espontaneidade sorridente.
quer dizer.
não é que eu não costume cantar ao volante enquanto enfrento o aterrador trânsito matinal da ponte da arrábida.
mas raramente o faço com expansividade suficiente para, páginas tantas, olhar para o lado e dar de caras com outro automobilista sorridente, que me pisca o olho e acena alegremente quando as filas se começam a deslocar.
“quero ver as cores que tu vês”
e por aí fora.
e sim.
eu prometo.
(:
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