#23

Dachau, 28 de Outubro de 2007

O domínio Nazi durou doze anos. Penso que toda gente sabe a história. Em mil novecentos e trinta e três, Hitler sobre ao poder, apontado pelo Presidente Hindenburg e com o apoio de uma nação sedenta por uma recuperação que se mostrava difícil depois da Primeira Guerra Mundial. Depois da morte de Hindenburg, Hitler rapidamente estabelece um regime totalitarista e desencadeia o extermínio de Comunistas, Socialistas, Judeus, Ciganos, Homossexuais, Emigrantes e tudo o mais que lhe causasse aversão. Sob o pretexto de reinserção social, logo em 1933 é criado o primeiro Campo de Concentração: Dachau. Com uma capacidade para seis mil pessoas, Dachau chegou a abrigar duzentas mil. Dados oficiais apontam para trinta mil mortes. Uma visita ao campo transforma estes números em cinzas, a que se juntam as emoções adversas que nos socam o estômago. É surpreendente a crueldade que temos dentro de nós.



Para chegar a Dachau tivemos de atravessar o nevoeiro da Baviera durante duas horas, quase até Munique. Dachau é uma vila muito pequenina, pacata, a fazer lembrar aquelas zonas urbanas perfeitas que vemos nos filmes, onde tudo parece ter sido pensado de forma a ser o mais irrepreensível possível. Ao pousar os olhos naquelas casas, naquelas ruas, nos pequenos jardins e nas crianças que aproveitavam o Domingo para brincarem cá fora, fico a pensar como pode um homem escolher tão pacata localidade para desenvolver uma máquina de matar. O condutor do autocarro 122 recebe-nos com um sorriso na cara, espera que a Magda acabe de fumar lá fora enquanto todos esperam no calor do interior do autocarro. Diz-nos que sim, que é este o autocarro para o Memorial, como agora é chamado. O caminho para o campo é feito a uma velocidade lenta, deixando-nos apreciar a beleza da vila. De cada vez que estou num sítio destes, não posso deixar de pensar quão sortudas são as pessoas que vivem num lugar assim, onde o tempo para desde que se nasce até que se morre, onde é realmente possível respirar. Mas esquece lá esses devaneios Pedro, o autocarro parou.



Dois passos e somos recebidos por uma enorme placa de mármore: «KZ-Gedenkstätte Dachau, the significance of this name will never be erased from German history. It stands for all concentration camps which the Nazis established in their territory». Bem-vindos pois então. Um grande arruamento com bastante vegetação, um riacho a passar e a rede – então electrificada – que deixa passar a vista de um imenso prédio branco, várias torres de vigia, enormes bunkers. À primeira vista, o campo parece acolhedor. O portão principal, hoje aberto, tem inscritas as palavras «Arbeit macht frei», algo simples para o meu repreensível alemão. O trabalho faz-te livre. Respiro fundo, passo o portão.



O memorial é isso mesmo. Um memorial. De algo que já passou. Já não se vêem SS a forçar crianças a um trabalho desumano, já não há novos e velhos a arrastarem-se pelos enormes pátios implorando de fome. Já não há ninguém nos dormitórios nem nas inexplicáveis celas. Das 32 casernas apenas duas subsistem, estando o espaço das outras demarcado para as futuras gerações. Os dois crematórios estão lá, a câmara de gás também. Das cinzas que deles restaram construiu-se o jardim mais bonito que alguma vez vi. E depois, há a merda do sentimento de raiva, de medo e de impotência que ganhamos ao percorrer o enorme espaço.



Do pátio enorme sabemos que era onde os detidos tinham de marchar e trabalhar arduamente, ser baleados ou obrigados a ficarem no mesmo sítio, de pé, durante dias. Das barracas vemos as condições miseráveis onde cento e vinte almas deviam dormir, em caixotes de cinquenta por cento e setenta centímetros, iguais a toda gente. Através de enumeras descrições, ficamos a saber que as pessoas eram mortas por ter a cama mal feita, por entrarem de sapatos, por não manterem a ordem no sítio que lhes era destinado. Da prisão, vemos as condições horríveis onde presos políticos, padres e outros mais eram mantidos, quer em celas banais, em postes onde eram atados pelas mãos ou em celas onde os prisioneiros, com setenta centímetros quadrados de chão, eram obrigados a permanecer de pé. Vemos as enfermarias onde se realizavam as horríveis experiências médicas.



E o cheiro. Esse mal que não desaparece e que nos atinge como mil setas, o horrível cheiro da morte que cinquenta anos depois insiste em ficar. Cá fora, explicam-nos onde eram baleados os prisioneiros comunistas, o caminho que efectuavam em direcção à morte, indicam-nos para que vedações corriam os desgraçados que queriam pôr fim à sua própria vida.



E as fotos. Fotos que nunca mais acabam, fotos de pilhas com dezenas de cadáveres feitos de pele e osso, fotos de prisioneiros a tentar escapar, fotos de velhos infelizes que trabalharam até ao último suspiro, fotografias de rapazes esfomeados, cães obesos e guardas sorridentes, fotografias de condenados suspensos pelas mãos, de condenados a serem baleados, de pobres almas a serem chicoteadas. E claro, os postes onde os primeiros foram suspensos, buracos das balas onde os segundos padeceram e os objectos de tortura com que os últimos deram os seus últimos gritos de misericórdia.



Mas não acaba, porque ao fundo da bela avenida por onde nasceram as trinta e duas barracas existe um jardim. Um jardim com duas casas admiravelmente belas e pacíficas. Uma porta. Dezenas de chaminés. O cheiro volta. Há a sala de desinfecção. Há a sala de espera. Há a indicação de sala de banhos e a explicação de por onde saía água para enganar os mais desconfiados e por onde saía o gás mortal. Há muitos fornos crematórios, que foram construídos porque os dois primeiros não davam conta do recado, mas não é isso que impressiona.



Há a câmara de gás. E apesar de este ter sido o primeiro campo onde foi construída uma câmara de gás mas esta não ter sido utilizada para mortes em massa, houve gente que ali morreu. E tocar naquelas paredes e naquele chão como eu toquei dá a volta ao nosso fraco estômago. Garantido. E depois há um passeio pelo jardim que falei, com as suas flores e árvores, ladeados por placas que explicam que ali repousam inquietos milhares de judeus. Há um pequeno recanto, um muro e uma grande trepadeira. Ali jazem outros tantos. É horrível.



Terminamos a visita pelo Museu que explica tudo aquilo que nós não queremos saber, que mostra tudo o que não queremos ver. Há um pequeno filme que deixa qualquer um absorto de loucura e raiva. Saímos do campo sem trocarmos palavra. Duas horas depois chegávamos a Nuremberga, entravamos nas nossas casas e as únicas palavras que tinham sido trocadas viajaram em forma de embaraçados suspiros. Foram Homens que fizeram isto. Homens como tu e como eu, que olhando de frente um pobre rapaz de vinte e três anos lhe dava um tiro por este pedir um pouco mais de comida. Foram Homens, porra. Foram Homens.

7 Comments:

Blogger Helena Borges said...

=| Doi só de ler o que escreves e imaginar...

October 29, 2007 at 9:57 PM  
Blogger paperdoll said...

a cultura da cerveja agradeces, não? :p
arre que essas fotografias são mesmo boas... por mim o teu ego pode brilhar sempre, estão fantásticas. já vi que gostas do p&b, apesar de não parecer que vês a tua estadia aí em tons de cinza.. :) ah e a culpa não é só da câmara e de um programa... afinal quem escolhe o enquadramento? a luz? o plano?
vou continuar a ir ao flickr, sim!

October 29, 2007 at 10:56 PM  
Anonymous Anonymous said...

Sinto-me uma passiva e inútil quando me lembro daquilo que o Homem pode ser... Já me tentaram explicar mas não consigo deixar que entre explicação nenhuma, não são como eu, não são como tu, não são.

October 30, 2007 at 2:50 AM  
Blogger Lua said...

*suspiro*...arrebatador, zé...obrigada.

October 30, 2007 at 5:24 PM  
Anonymous Anonymous said...

Continuas a ser uma caixinha de surpresas.
Escreves muito bem para um engenheiro (perdoa-me mas eu trabalho com eles e sei do que falo), e além disso, tens um encanto único ao fotografar.
Continuar. Volta depressa. Bjs**
Sara Tavares - a cantora sem voz

October 31, 2007 at 4:33 PM  
Blogger catarina said...

não sei comentar este teu texto. já tentei, já li, já reli, já me dobrei sobre mim própria para tocar a ponta dos pés e perceber a dimensão da minha realidade. pequenina, pois.
quando os silêncio andam lá tão fundos agarrados ao mais intrínseco de mim, torna-se difícil cuspi-los em palavras.

[ao contrário do que dizias no post anterior, eu sempre quis visitar um campo de concentração. sofrer por osmose um bocadinho do que Eles sofreram, ouvir os gritos que - tenho a certeza - ficaram retidos na parede. admirar um povo que não esconde um passado negro como todas as mortes que carrega. e fazer de conta que isso faz de mim uma pessoa mais humana. que é o que geralmente fazem as feridas abertas.]

November 2, 2007 at 4:31 AM  
Anonymous Anonymous said...

Hey!

Tenho de ir lá. Sentir o que tu sentiste. O terror que nos faz pensar...


Beijinho da tua vizinha no 12 da Sophienstraße :) *Ligia

November 24, 2007 at 7:10 PM  

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