#27

Nürnberg, 9 de Novembro de 2007

Escrevi uma vez que apesar de gostar do Porto de uma maneira muito minha e extremamente bonita, nunca me senti bem a andar pelas ruas da cidade. Sentia-me parte da vida de todas aquelas mulheres baixinhas e vestidas de forma espampanante, de todos os homens com barriga de Super Bock que passeavam os seus egos pelos cafés da cidade, de cigarro no canto da boca e jornal distraído na mesa, sentia-me parte de todos aqueles miúdos que atiravam papeis húmidos pelos cilindros das canetas às mulheres baixinhas e sentia-me parte de todas as miúdas portuguesas alvo dos sons de apreço dos homens com ego, estômago e estímulo sexual avultados. Sempre que ia para o ginásio, lá no cimo da Constituição, sentia aquele barulho vindo do infantário e da escola primária muito meu, via as pessoas de olhar nervoso na paragem como muito minhas, atravessava as passadeiras nos perigosos vermelhos de uma forma que era minha, dizia olá às pessoas do ginásio e perdia-me em conversa com a Paulinha na recepção, a Sandra junto às máquinas, o António onde quer que ele estivesse a fazer o seu trabalho de manter o clube num brinco. E todas estas conversas, todos os sorrisos, as palavras trocadas e as frases sem sentido que muitas vezes me saem da boca quando não sem mesmo o que dizer eram todas coisas que saíam daqui de dentro como muito minhas. A Constituição é minha, o Marquês e a Boavista são meus, todas aquelas ruas, as avenidas e os quelhos que vão dar à baixa são indiscutivelmente meus. O homem que diariamente me pedia um euro para a sopa, a mulher desdentada que me mandava uns beijos apelativos, a senhora que achava que eu todos os dias precisava de um novo par de meias, o simpático empregado do café di Roma que insistia em me trazer o meu chocolate quente preferido. Até vocês, que eu pouco via, eram muito meus. Até tu, e tu e tu e tu, que me deixas-te de falar, ou com quem eu deixei de falar, não sei bem, és muito minha e muito meu, e muito minha e muito meu. O fumo a sair de uns autocarros, o vapor de água que saía de uns poucos, o barulho ensurdecedor do motor de todos eles, o som que em conjunto com aquele bater das ondas e da nortada nas pedras do castelo do queijo, do molhe ou em gondarém. Todos eram muito meus. O rio e aquela cor alaranjada que a ribeira lhe oferecia à noite, os simpáticos seres que nos queriam dar muita droga, os pouco simpáticos seres que nos atiravam com batatas, água e sabe lá Deus o que mais. Todos eram muito meus. O cinema e as pipocas no Arrábida, os jogos de futebol aos sábados de manhã, as corridas no parque da cidade e as tardes e tardes passadas em casa a fazer que trabalhava. Raios, como eram muito minhas. A cidade era mesmo muito minha. Escrevi uma vez que apesar de gostar do Porto de uma maneira muito minha e extremamente bonita, nunca me senti bem a andar pelas ruas da cidade. Deixem-me então mostrar-vos um pouquinho mais o que é isto de ser ERASMUS em Nuremberga.



Ontem tinha muito que fazer. Tinha mesmo muito que fazer. Mas estava nervoso de mais, não conseguia estar quieto e ficar sentado ao computador estava-me a destruir as pequenas ligações, uma por uma. Então peguei na minha música e na minha máquina e fui lá para fora. O Martin Luther King começou a discursar. Depois veio a guitarra do Paulo Furtado a que logo se juntaram as vozes da Selma e da Raquel (quem diria, que um dia…). Soul city, here we go! A música apanhou-me de surpresa, já há uns tempos que não andava com a febre de Wraygunn. Primeiro saltei para dentro de um autocarro. Depois troquei por um eléctrico. Terminadas as pequenas viagens, feliz por não ter sido multado à laia de não ter bilhete, comecei a andar pelos 5 kilometros de avenidas que dão a volta às muralhas da cidade. Perdão. Não andei. Algumas pessoas olhavam para mim, até os filhos de uma grandessíssima prostibulária que conduziam os seus porsches gt3 (sim, aqui há disso) ficavam a olhar para mim. Depois lá entendi. Não andava. Dançava. Não é normal ver alguém a dançar pela rua, a soltar as mãos e a dar larga aos saltos entre os dois pés, a cantar feito desalmado e a sorrir para as meninas bonitas que passam do alto das suas bicicletas encantadas. Pois olhem, eu ontem dancei muito, e ainda eram apenas três da tarde. É a mais pura das verdades. Eu posso gostar muito do Porto, mas nunca me sentirei tão livre ao ponto de dançar como um louco que sou pelas ruas da cidade. Aqui não interessa, quem são eles se não pinturas no quadro mais bonito onde alguma vez vivi? Entretanto fez-se tarde, o que é o mesmo que dizer que passaram as quatro da tarde. O sol pôs-se, as iluminações de Natal acenderam-se, eu sentei-me ao frio a ler, enquanto o suportei. Depois enfiei-me no meu sofá, enrolado em mim e aquecido pela grande chávena de café e pelo chocolatinho que o simpático empregado continuamente me insiste em dar. Dentro do Starbucks, já não havia Wraygunn mas a Nina Simone fazia-me sentir ainda mais em casa com a sua sensualidade de me levar aos píncaros. De chávena quente na mão, olhei absorto por entre os flocos de neve pintados nas vitrinas o espírito quente de toda aquela gente a largar os seus empregos, a comprar três pequenas salsichas dentro de um pão, vinho quente, café, cappuccinos, gingerbread ou o que mais for, a encontrar os seus amigos, a abraçarem-se e a contarem as peripécias do dia. Aqui não tenho ninguém a quem contar as minhas peripécias. Alias, não tenho em lado nenhum a não ser neste espaço, não gosto assim tanto de estar com pessoas, verdade seja dita gosto de ser um bichinho do mato com o meu espaço para observar. Mas esta sensação de liberdade que sinto para qualquer lado que vou faz-me não pensar muito no como era estar aí desse lado e questionar-me se quando voltar será ou não diferente. Aqui posso saltar, posso sorrir a toda gente e esperar sorrisos e ares aparvalhados como resposta. Não faz mal, sou livre, mesmo muito livre. E tu?! Já gritaste alguma coisa hoje?

5 Comments:

Blogger Helena Borges said...

Da maneira como falas até parece que nao vais (e nao keres) voltar... Aquilo tudo nao ERA muito teu... Aquilo tudo É muito teu. Devias ter escrito no presente...

Ahhh e se no Porto saltasses e sorrisses a toda a gente, tb podias esperar sorrisos ou ares aparvalhados como resposta.

Eu sorria-te =)

November 9, 2007 at 4:53 PM  
Blogger catarina said...

psiu.

como pessoa mais velhinha e com uma experiência de vida mais alongada do que a tua, vou contar-te um segredo: a verdadeira liberdade é a que se conquista dentro de portas.

lá fora, a liberdade é inevitável: fora do teu canto, é evidente que nenhuma amarra te assalta. podes usar esse bónus como desculpa para agarrar esse sentimento e não mais o deixares fugir, mesmo dentro do Teu mundo, ou podes deixá-lo escapar quando (se) voltares. e nesse caso, terá sido só e apenas uma ilusão.

pessoalmente, opto todos os dias pela primeira hipótese. mas ei: ninguém disse que as ilusões eram más.

[e eu, eu farto-me de sorrir a desconhecidos quando vou a caminhar pelas minhas ruas: é verdadeiramente fascinante aquele jeito maroto de saudar um estranho e receber em troca um olá meio pasmado(;]

November 9, 2007 at 8:04 PM  
Blogger paperdoll said...

tambem tenho saudades do porto. tenho pena de não poder dançar em lisboa, acho que é por esta cidade me dar tantas dores de cabeça...
hoje dormi num aeroporto, acho que nem consigo gritar. mas apetece. fica adiado..

November 11, 2007 at 11:38 PM  
Anonymous Anonymous said...

anda gritar pa minha beira...prometo que grito contigo :) ja gritei bastante no meu quarto...e na rua...agora já so faltas tu....

November 12, 2007 at 4:13 PM  
Blogger Guilherme said...

Brutal...
um grande Abraço!!

November 12, 2007 at 6:07 PM  

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