#28

Berlin, 11 de Novembro 2007

São quatro e vinte da manhã. Em Nuremberga cai uma pequena morrinha que nos puxa para novamente para a cama. O alarme insiste nervosamente, obrigando os meus pés a tocar na alcatifa do meu quarto. Olho lá para fora e aprecio o escuro da noite. Da cozinha vem o som de gargalhadas de um dos meus vizinhos e dos seus amigos. Passam a noite entre cervejas, cigarros e muitas conversas. Gente porreira, penso enquanto quase entro por outro sonho dentro. Entendo que estou prestes a adormecer outra vez, agora sentado na borda do colchão, e levanto-me num salto que me leva directamente à cozinha para resmungar um bom dia que os faz erguer o cenho durante uns bons segundos. Banho tomado, saco pronto, vamos embora. Lá fora as pessoas aparecem todas ao mesmo tempo, com uma expressão ensonada na cara. A maioria à excepção dos condutores pouco dormiu. Os grupos dividem-se. O Dinesh fica com os Coreanos, o Jochen com os Espanhóis, o Matt com as Checas e o Irmão, e eu fico com o resto das meninas só para mim. As malas são atiradas para dentro da mala, os dedos das mãos tentam atabalhoadamente aprender a trabalhar com a menina do GPS, um CD pintado à mão vai parar dentro do auto-rádio. Pé na embraiagem, outro no acelerador, até amanhã Nuremberga.



São quatrocentos quilómetros de Autobahn que, em boas condições, se fazia em pouco mais de duas horas. No entanto o tempo prega-nos uma partida e oferece-nos durante os primeiros cento e cinquenta quilómetros uma tempestade de neve. Sim, o Português estava a conduzir um Mercedes na Neve. Os Broken Social Scene cantam-me que eu costumava ser um dos que estavam muito mal mas que eles gostavam de mim. Agora estou longe e não vou voltar. Ao mesmo tempo, milhares de flocos de neve têm o seu fim no meu pára-brisas, uma estrada de três faixas onde o alcatrão só em visto em parte de uma delas é iluminada por dois grandes faróis com direcção a sonhos mais altos. Os que não dormem vão conversando, à frente o carro do Dinesh prega-lhe uma partida de vinte segundos enquanto a traseira lhe foge para um lado e para o outro para um lado e para o outro. Assustador, mas felizmente nada acontecer. Aprendida a lição, começa a andar mais devagar no nevão. Quando a neve levanta temos a estrada só para mim. Sou só eu, a estrada e o acelerador. A experiência da Autobahn quatro meses depois de pegar num carro pela última vez foi qualquer coisa de especial.



À chegada a Berlim todos se empurram para terem uma vista melhor. Fizemos uma entrada por uma antiga zona a sul, na parte leste da cidade, a parte que era comunista. Berlim entra nos nossos olhos como uma cidade de chocolate que precisamos de consumir rapidamente. Dois dias não iam chegar para ver tanta coisa que imediatamente criava entre nós e a cidade uma ligação especial. A auto-estrada dá lugar a uma grande avenida ladeada por enormes árvores, que dá lugar a uma zona habitacional tipicamente comunista, com grandes passeios e prédios extremamente feios. Pela estrada passeiam Berlinenses, que não se podem confundir com Alemães, de rosto feliz, que se dirigem para as suas bicicletas para um passeio de Sábado ou para os seus carros, na maior parte dos casos os mesmos dos anos 80. Convém aqui dar uma pequena explicação sobre o que é Berlim no meio deste país Alemão.



Terminada a Segunda Guerra Mundial, a Alemanha foi dividida em quatro partes. Para salvaguardar a individualidade da enorme capital, a cidade de Berlim foi pelo mesmo caminho. Assim, em pleno centro da divisão territorial que calhou à União Soviética surgia outra divisão, com quatro partes de Berlim a serem divididas entre Soviéticos, Ingleses, Americanos e Franceses. Para impulsionar o crescimento da cidade, cedo os três países ocidentais uniram as suas forças para trazer Berlim de volta ao seu rubor pré guerra. Era uma cidade que já tinha dado origens a duas guerras mundiais. Pois a somar a isto, foi o palco do início e fim da Guerra Fria.



Em 1961, com a desculpa de manter a democracia intacta mas com o verdadeiro intuito de parar a onda de emigração para a Alemanha Ocidental, os Soviéticos criam uma barreira de cento e cinquenta e sete quilómetros, criada por dois muros separados por campos minados, fossos, arame farpado e redes electrificadas, vigiado minuciosamente por guardas da URSS. Durante vinte oito anos, famílias foram mantidas separadas, dezenas de cidadãos de leste perderam a sua vida enquanto tentavam escapar, contando-se pelos dedos as histórias de pessoas que conseguiram ludibriar os guardas do muro.



O resultado final do muro são duas cidades diferentes, que ainda hoje continuam a tentar encontrar-se. Com a queda do muro, a invasão capitalista ocorreu com velocidade na parte de leste, mas os seus habitantes não fugiram para a zona ocidental. Afinal, o que eles desejavam não era emigrar para o outro lado do muro mas sim ver o que era, entender o que por lá se passava. Hoje são visíveis por toda a zona a este da cidade as marcas deixadas pelo período comunista, enquanto a zona oriental é marcada por uma arquitectura extremamente ligada aos anos setenta e oitenta. No panorama do país, Berlim é uma das zonas mais pobres da Alemanha, onde é difícil arranjar emprego o que origina a uma baixa geral dos preços. Um bom contraste, depois de quatro meses a viver na Baviera, a parte que leva a economia do país às costas. Esta foi a Berlim que nos foi apresentada.



Durante a nossa estadia nevou imenso. Pela manhã e pelo fim da tarde a cidade cobria-se de branco, enquanto durante o dia o frio era uma constante. Nada que nos intimidasse a descobrir a capital Alemã. Da Pariser Platz, onde o Michal Jackson fez aquela proeza memorável com a sua criança até à Ilha dos Museus, passeamos por entre o famoso Brandenburg Gate, o clamoroso Memorial Judeu, a surreal zona onde estavam instalados os Bunkers de Hitler, um pouco do Muro de Berlim e o antigo quartel-general das SS. O Checkpoint Charlie e toda a sua história sobre as tentativas de fuga de oriente para ocidente, a Gandarmenplatz e a Babelplatz com a Universidade como pano de fundo, onde pessoas como Marx, Engel, Nietzsche ou Einstein estudaram e leccionaram. A imponente TV Tower, o segundo edifício mais alto da Europa a seguir à TV Tower de Moscovo, com o seu restaurante giratório, ou o fantástico panorama que o Reichtag nos oferece do topo da sua enorme cúpula de vidro.



À noite, com um frio de fazer bater o dente, as meninas queriam beber e eu queria conhecer a cidade. Em vez de me mandar sozinho pelas ruas da cidade, perguntei-lhes o que achavam da ideia de transformarmos a nossa Mercedes num Barmobil, uma espécie de Papamobil mas com a santidade do álcool a fazer as vezes do outro senhor. Destino aleatório no GPS e lá ia eu desbravar a cidade de Mercedes, enquanto no banco de trás elas se divertiam com a dificuldade de enfiar vinte centilitros de vinho num copo enquanto o carro se movimenta. Dentro do carro tínhamos formado o nosso próprio clube Berlinense, com direito a bebida, comida, o por vezes irritante fumo de cigarros, os risos descontrolados típicos de uma noite perfeita, muita música e dança que começavam sempre pelo condutor e os olhares que se acabavam sempre por perder pela magnificência de uma cidade que se de dia é monumental, à noite se liberta num mar de luzes que a mim tanto me relaxam o espírito. Se viram o Lost in Translation, e em especial aquela cena dentro do táxi na chegada a Tóquio, podem imaginar o nosso estado de espírito se lhe juntarem uma festa demente dentro das quatro portas.



Passou depressa, muito depressa. E ao chegar a casa, depois de devolver o carro na Europcar, sentia-me como se tivesse sido abanado por um mar de gente. Não queria estar aqui, queria voltar para o meio daquela confusão de ruas, luz e neve, queria voltar para dentro do carro e guiar mais um bocadinho que fosse, queria que esta gente toda se deixasse ficar por aqui e não fosse dormir. Foram só dois dias na capital Alemã, mas foram dois dias que mexeram comigo num jeito muito estranho. Deitado na cama, tento entender aquilo que fiz e dar-lhe algum sentido, explicar a conversa com a miúda da recepção ou o casal de namorados na pizzaria. Tentar entender aqueles flocos enormes de neve que me pintaram o casaco de branco e explicar porque é que mesmo ainda aqui estando, já sei que daqui a uns meses vou estar cheio de saudades destes sacanas todos que tenho aqui como amigos.

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