#31

Nürnberg, 29 de Novembro de 2007

A vida aqui no frio. O sol levanta-se às sete e quarenta e dois da manhã. E é por volta dessa hora que, já depois de uma ou duas chávenas de café me queimarem um bocadinho mais o céu-da-boca, me lanço ao vento que carrega nos seus três graus negativos um bombardeamento de agulhas invisíveis. Fora da lã, malhas e afins, dois olhos muito despertos, um nariz feito gelo e duas bochechas assombradas pela atmosfera glacial desta minha cidade das fantasias. No caminho para a faculdade, ciclistas enfrentam o frio enquanto a maior parte se desloca de dentro dos seus carros climatizados. Eu prefiro andar. Já vai para cima de um mês que não pego na minha bicicleta. Assim consigo sentir mais as pessoas, não as vejo como um borrão que cedo foge da memória. Da sala de aulas, o parque que aqui há um mês era do mais verde que alguma vez tinha visto dá agora lugar a um manto de gelo que quer ser neve. Neve, essa magia que por aqui só se mostra aos fins-de-semana, nunca cobrindo a cidade com um manto branco, porque as nuvens teimam em ser de pouca dura. O céu teima em continuar azul celeste e eu enfrento o medo deste pensamento que tenho na cabeça. Venha o mau tempo, quero ver Nuremberga vestida de noiva. Cinco horas depois, à saída da Faculdade, o tempo continua igual. Frio, muito frio. Espero que a Magda acabe de fumar um dos seus finos cigarros polacos e mando-me para casa para meter qualquer coisa à boca. Barriga satisfeita, curiosidade pela caixa de correio e pelas histórias da noite passada dos meus vizinhos, salto para a rua. Por natureza, não consigo ficar quieto. Os meus joelhos crepitam por movimento, as minhas mãos tendem sempre a encontrar um qualquer pedaço de papel ou brinquedo em que se possam entreter. Não consigo ficar por casa, é o que quero dizer. Por isso mando-me para a rua e percorro ao frio o caminho que há quase três meses me tenho habituado a percorrer. Viro à direita na minha porta, desço a rua deserta passando pelos carros estacionados em cima do passeio, o prédio feito de madeira, o terreno baldio do lado esquerdo. Corto para a rua de tijolo vermelho que ostenta, brincalhona, um sinal de recreio em cada um dos seus extremos, desço até à entrada do primeiro túnel por baixo dos caminhos-de-ferro, que ignoro. Continuo pela pequena subida, sempre ladeado pela via de bicicletas, até ao túnel final, aquele dos relógios atrasados que me leva sempre até à alegria encantada que é ver o labirinto das linhas electrificadas do eléctrico, a confusão do maior entroncamento da cidade, a primeira grande torre da cidade antiga, o início da muralha de Nuremberga, o deslumbre diário. Depois da passagem subterrânea que me leva até ao início da minha cidade, tudo é maravilhoso, uma tranquila azáfama que me deixa diariamente de rastos. Por todo o lado se cruzam bicicletas com os seus ciclistas enchouriçados em enormes casacos, turistas desprevenidos que muito batem ao dente, miúdos que deambulam em matilha com os seus casacos de couro e espinhos, cristas rosas e verde-esmeralda, o máximo de cervejas que a mão que não segura o ente querido pode transportar, colegas de trabalho que se encontram para um café num dos centenas de bistros da cidade, pessoas como eu que se limitam a andar e a ouvir qualquer coisa que o gira-discos portátil lhes queira dar. É inicio da tarde mas o sol já se começa a escapar, o frio subsiste e ameaça agravar a minha condição de rapaz friorento que gosta de andar enrolado em roupa quente.



Procuro o meu poiso capitalista junto ao Pegnitz, a empregada sorri com o meu alemão de sarjeta, devolve-me o especial de natal com nozes e caramelo que têm hoje para oferecer e o delicioso muffin de maçã e canela aquecido. Será que notou no meu arrepio enfadado quando o total final se iluminou na caixa? Pisco-lhe o olho, tomando partido da confusão de novas sensações que um gesto anormal confere a estas Alemãs de cabelo muito negro e olhos azul pérola e deixo-me afundar por cima de uma das pernas nos novos sofás da sala junto ao rio. É tempo de me perder. Há algo de celeste e enternecedor nesta coisa de não falar a língua do país onde estamos. Olhar e ouvir as pessoas, quase sempre sem as entender, leva-nos a prestar uma atenção excessiva à expressividade que todos adicionam às conversas, às mudanças de tons, aos olhares que fogem para a mesa ao lado, ao jeito cómico de pegar numa chávena maior que as mãos que a seguram, a forma sedutora e apaixonada de uns, maquinal e reflectida noutros, perdidamente triste noutros tantos. E depois, basta esquecermo-nos de que não falamos esta língua tão estranha, e a conversa começa a fazer todo o sentido. O trabalho não me correu muito bem, detesto isto que faço. Devias juntar-te ao meu escritório, ela conseguiu lá um lugar à pouco tempo e adorou. Já viste o gorro daquela miúda ali sentada ao canto, pergunto-me onde o comprou. Fui a Londres esta semana, não parou de chover, também foi assim quando lá estavas? Acho que estou apaixonado por ela, sabes? Mas não lhe posso dizer, está tão longe. Porque não lhe ligas? Acho que é isso mesmo que vou fazer. Olha, hoje encontrei um homem no eléctrico que não parou de conversar comigo, e acreditas que ele conhece o meu irmão? Não te esqueças de que ainda temos de comprar mais daqueles Lebkuchens deliciosos.



A noite já caiu à muito mas só agora, por volta das oito da noite, as lojas começam a fechar. Algumas estão abertas desde as seis da manhã. Despeço-me da minha cidade friorenta, das longas gabardines e das nuvens de palavras que saem para o ar gelado da boca de cada um, aceno um até já aos preparativos eternamente belos do Christkindlmarkt que vai começar já amanhã e, antes de ir definitivamente para casa, faço uma paragem numa das incontáveis bäckerei, padarias, desta cidade. Depois de escolhida a carcaça mais quente e escura da cesta, embrulho-a num saco de papel e encosto-a ao peito. Faço o caminho de volta até casa com o cheiro e o calor do pão acabado de fazer para me esquecer dos três graus negativos que agora fazem. Vendo bem as coisas, hoje não queria outra temperatura que não esta.

2 Comments:

Blogger Helena Borges said...

ia jurar que tinha visto uma musica algures por aki...

November 29, 2007 at 5:57 PM  
Anonymous Anonymous said...

Nesta noite branca
sou um boneco de neve
e tenho a certeza que vou derreter quando os teus lábios tocaram nos meus!

Já diziam os grandes Anjos da nossa terra!!!
VIVA, Pum

November 30, 2007 at 2:43 PM  

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