#33

Nürnberg, 12 de Dezembro de 2007

Faz-se tarde, penso para os meus botões. Despeço-me do fumo e confusão do bar para abraçar a chuva, inspiro fundo a noite e dirijo-me para a primeira rua escura que julgo não reconhecer. Perco-me no labirinto de paralelos mal recortados e casas medievais barrigudas, subo os ombros na procura por um pouco mais de calor, atravesso em passos atrapalhados as poças que sorrateiramente vão aparecendo aqui e ali, encanto-me pela luz trémula que a estrada reflecte dos faróis dos carros que vão passando pela estreita ruela que a muralha milenar abraça. Rapidamente entendo que não faço ideia onde possa estar e sorrio aos parapeitos vermelhos de madeira que vou descobrindo. Uns passos mais e de uma das janelas vejo uma mulher que mira o vazio, os enormes peitos descaídos num sinal que o negócio podia ir melhor. A visão repete-se durante mais meia dúzia de janelas, até que os néones vermelhos desaparecem e a pacatez católica volta ao lugar. Depois vem um pequeno cedro, dois castanheiros, a imponente ponte de madeira de onde setas voavam em direcção aos que se queriam longe, é agora a vez do túnel escavado na pedra e finalmente o reconhecível barulho dos carros a deslizarem pela estrada encharcada. Estranhamente, aqui não chove torrencialmente. Estranhamente, aqui a chuva é amiga, faz-me cócegas na cara e diz-me que não me vai deixar sentir desconfortável. Com o frio é a mesma coisa. É tão tarde. Sim, deve ser mesmo tarde. Evito olhar para o relógio e sigo em frente. A esta hora devem continuar todos no bar, a beber e a tentar levar alguém para a cama o mais depressa possível para que a noite acabe com uma boa história para contar. Uns vão se lembrar de tudo no dia seguinte, outros vão fazer de conta que nada se passou e uns poucos vão realmente passar ao lado da noite, do dia e, muito provavelmente, de tudo o resto. Perguntaram-me porque me vim embora e eu respondi que se fazia tarde, que era mesmo isso que pensava para com os meus botões.



Na verdade não foi nada disso. Já tinha conversado com todos, rido e abraçado cada um deles e agora era tempo para fazer o que mais gosto, esta coisa de estar sozinho, de não ter nada que me amarre a lado nenhum e de não ter de passar o resto da noite no bar para saber se o desfeche com aquela empregada de olhos azuis podia ser outro ou não. Será que precisamos mesmo disso? Uma e outra vez? Só para provarmos que estamos mais vivos do que aquele pobre coitado que está enterrado em bebida e erva mesmo ao nosso lado? Faz-se tarde. Sim, faz-se tarde. E a cerveja pode ser muita e dar larga aos sorrisos dos outros, mas o meu está sempre aqui e só não o puxa quem não quer. Ouviste? Só não o puxas se não o queres. Por isso puxa. E então largo-o a ele e largo-a a ela, dou dois beijos desengonçados como os são na maioria aqueles que damos em regime de emigrante, digo até amanhã e salto para o frio e para a chuva. Eles gostam desta minha coisa de andar pelas ruas escuras e desertas só para ver o que nunca antes tinha visto. Aparece outra mulher, de copa mais pequena mas mesmo assim trazidos à terra pela força mãe da gravidade. Enfrento-a nos olhos e pergunto-me o que a terá conduzido até a uma janela ofuscante e um pouco de cetim. Mantenho o passo certeiro e relaxado que me leva uma hora a chegar até casa, cruzo as praças e ruas que de dia se enchem de gente, aceno ao homem que varre o passeio, continuo em direcção ao nada.



Faltam dois meses para deixar todos estes segredos que me agarraram, a padaria do pão que sabe a mel, a faculdade dos vidros encantados, o parque das árvores nuas e dos corajosos barrigudos que como eu por lá ainda correm, os incansáveis manifestantes em frente à Lorenzkirsche, os sofás violeta das minhas leituras, os semáforos que me fazem desesperar, os meus vizinhos e o abastecimento de festas na cozinha que me vai chegar para uma vida. Têm sido meses calmos, extremamente calmos em comparação com vidas lá para os lados do Alentejo ou do Minho, mas têm sido meses extraordinários dos quais já sinto a falta. Não quero sair daqui, não quero. E o saber que daqui a pouco já tenho de me ir embora faz-me sentir dentro de um comboio prestes a descarrilar em direcção a um assustador penhasco. Eles continuam no bar de veludo pele de tigre a fazer a sua festa e a derreter os olhos na minha empregada de olhos azuis e roupa interior negra rendada. A Jin Hee continua com a sua bebida a meio e a Anne a fazer gestos obscenamente franceses para a câmara. Podia estar com eles mas não estou. Passo agora pelas barracas cobertas de lona do mercado de natal, pela fonte dourada que permanece iluminada, pelas enormes portas de madeira que me embalam para casa com uma voz de fada a cantar-me ao ouvido. Sempre com a voz dela a cantar-me ao ouvido, a dizer que volte. A fada traquina que num abrir e fechar de olhos pode desaparecer. Não desapareças. E já está, agora é ele que pega na guitarra e canta, canta baixinho mas num tom certeiro, e pede para que eu me continue a divertir, mas que volte pela noite quando acabar de sentir a vida na pele. Está bem, eu volto. Porque sim, tenho muito de novo para contar, penso para os meus botões. Mas agora ainda aqui estou, olho o banco molhado e sento-me por um bocado a encher o vazio do parque. Um corvo resistente ao sono pula ao meu lado, insistindo em fazer um pouco de companhia. É a ele que hoje conto as minhas confusões. É a ele que explico como é incrível a quantidade obscena de saudades que vou ter de tudo isto. A quantidade estúpida de saudades que já tenho. E no entanto, ele bem vê, este sorriso detém-se incontrolável.

2 Comments:

Blogger Helena Borges said...

aiii cm adoro as tuas descrições. Em vez de te ires embora de Nuremberga, leva-me para ai e mostra-me cada cantinho que vais conhecendo... =)

December 13, 2007 at 2:18 AM  
Anonymous Anonymous said...

k post tão lindo escrevest tu :P já viste que dia foi?eheheheh beijinho...segredo:D

December 13, 2007 at 2:02 PM  

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