#35

Nürnberg, 17 de Dezembro de 2007

Sabem, adoro esta coisa de ser uma pessoa completamente fútil. Tenho vinte e dois anos e nunca fiz nada de jeito com a minha vida, queixo-me quando tenho trabalhos longos e entediante pela frente, registo diariamente como estou no curso errado e como devia ter nascido num sítio onde a minha arte de dormir de papo para o ar fosse bem compreendida. Mas há uma coisa que eu sei fazer muito bem: ler. Ontem acabei o "To Kill a Mockingbird" e hoje já comecei às gargalhadas a tentar entender o inglês cómico do David Sedaris. Até agora valeu-me pelo menos uma dúzia de gargalhadas num Starbucks cheio de gente a comer bolos tamanho calórico industrial em plena hora de almoço. Um pouco antes, enquanto perdia hora e meia da minha vida a escolher onde gastar melhor uns quantos euros em livros, uma senhora muito pouco alemã, com os seus quarenta ou cinquenta anos, daquelas negras bonitas e sorridentes, vestes largas e coloridas, lenço com motivos botânicos a cobrir a carapinha, veio ter comigo e num inglês algo arranhado mas completamente compreensível pediu-me carinhosamente que lhe apontasse um livro para ela oferecer ao filho no Natal, "porque gostava que ele começasse a ler coisas boas". Ó pobre diabo. É que eu gosto muito de ler, porque aprendo coisas novas que geralmente rapidamente esqueço, e muito certamente porque ler faz com que o tempo não doa, mas saber que livro dar a um miúdo de dezasseis anos para que ele ganhe o bichinho da leitura? Isso já é complicado para mim.



Não gosto de catalogar, não o sei fazer. Não faço ideia do que é bom para ou mau para. O primeiro livro que me saltou à vista foi o On The Road, do Kerouac, mas era uma chatice se a mãe dele vinha das Áfricas até ao meu poiso só para me dar uma tareia por eu fazer o seu filho sonhar em ser um tresloucado Dean Moriarty. Desviei por isso rapidamente os olhos da letra D e fui saltar no C de Chabon. Peguei com confiança e sem segundas leituras no The Amazing Adventures of Kavalier & Clay e depois desci até ao Cormac McCarthy para pegar no pequenino The Road. Assim a minha mente relaxava daquele nervoso desesperante de lhe querer dar o On The Road. Apenas caía um pequeno pedaço do nome, certo? Além disso o livro do McCarthy enternece qualquer coração meloso com aquela história de pai e filho e, quem sabe, o miúdo até lhe dava algum valor. E não quero saber que tenha sido a Operah a indicar-me o livro, até podia ter sido a Carolina Salgado - ou uma outra qualquer personagem mais actual do panorama azeiteiro-deprimente do nosso país. Então voltei-me para a senhora - e raios se não devia ter-lhe pedido o nome de tão simples e carinhosa que ela era! - e pedi-lhe que escolhesse entre as seiscentas e quarenta e seis páginas de letra miudinha ou as duzentas com espaçamento generoso. Ela ofereceu-me um sorriso e disse que levava os dois, desejando-me um bom natal. Meia hora depois, comigo ainda à volta do que escolher, voltou e perguntou-me timidamente se tinha encontrado mais algum. Eu, que tinha finalmente há coisa de minutos passado os olhos pelo The Life of Pi, que não tinha encontrado por não saber o nome do autor - Yann Martel, Yann Martel, Yann Martel! - num gesto rápido e eficaz colhi o livro da prateleira e disse que daquele eu tinha a certeza que o miúdo, fosse lá ele de que género fosse, ia de facto adorar. Espero que não me engane. Para mim, acabei por pegar em quatro e rezar para que a conta alemã ainda tivesse dinheiro lá dentro. Diz-me o saco de plástico esbranquiçado que comprei John Banville, «The Sea» e, noutro registo, Nick Horby «A Long Way Down», Dave Eggers, «How We Are Hungry» e finalmente aquele que comecei a ler, "Me Talk Pretty One Day" do David Sedaris. Sim, adoro esta coisa de ser uma pessoa completamente fútil. É que posso muito bem vir a ser uma nulidade para o evoluir da sociedade, uma vergonha para o papai e para a mamãe, uma frágil memória na cabeça de cada uma das pessoas que tenho espalhada pelas paredes no quarto, mas o que é certo é que gosto desta coisa de sorrir às pessoas que me miram embrulhadas em pensamentos confusos quando me deixo afundar nos sofás dos cafés, gosto de sair para os zero às vezes enervantes graus desta terra e largar cachecol, luvas e gorro só para sentir o frio a estalar com os meus inatos tremores, sinto-me bem quando respiro fundo e com alguém a cantar-me ao ouvido ou a sussurrar-me a meio dos pensamentos, olho para este céu que decidiu ficar azul por uns dias e sentir-me vivo. Porque estas ocasiões são raras, porque já ninguém se sente vivo e disso sim, deviam ter todos vergonha. É fútil, é uma pena, mas é bom. E como eu infelizmente não consigo balançar as coisas, não consigo ter estes momentos e ao mesmo tempo entender os modelos e integrações empresariais, os sistemas distribuídos e tudo mais, então tenho é de passar por estes momentos e agarrar-me a eles de uma maneira muito mais forte do que qualquer sabedoria me pode dar. Pode ser que um dia ser assim me traga algum proveito. Uma futilidade proveitosa, quem sabe?

2 Comments:

Blogger the girl in the other room said...

"I remember one day, many years ago, getting up at dawn, and having this sense of promisse...and I remember thinking to myself: "Ok, this must be the beggining of happiness! And of course now there will always be more!". But now, looking back, I can see that I was wrong. That it wasn't the beggining of happiness. It WAS happinness. That instant, that very moment ." in "The Hours"

:) *

December 18, 2007 at 12:18 AM  
Blogger Lua said...

fútil?nao, manjerico... (f)util, ou seja, no teu caso, fantasticamente útil... ainda nao te tinha desejado um bom natal este mes pois nao? com muitas rêndias!!**baci-e*

December 19, 2007 at 7:22 PM  

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