#38

Nuremberga, 18 de Janeiro 2008

Tinha desiludido a Anne há coisa de duas horas. Tenho de me lembrar diariamente que não se fazem promessas, porque acabamos sempre por não cumpri-las. Eu, mais do que ninguém, devia sabê-lo. A meio da tarde, por entre filas intermináveis de queijo Gouda e compotas biológicas, ela apanhou-me distraído e largou um dos seus sorrisos de criança. "Ontem exagerei um bocado na bebida, não?", perguntei-lhe enquanto tentava decifrar que levar para quando a fome apertar a meio do dia. Ela soltou uma gargalhada, revirou os olhos e continuou o seu caminho em direcção aos congelados. Eu segui-a. Sim, a noite anterior tinha começado ainda o sol ia alto. Era o último dia antes de começar a maratona de duas semanas de estudo intensivo para os exames e eu comprometi-me a não saber de cor o meu número de telemóvel alemão por volta da hora de jantar, o que, devo confessar, foi uma tarefa fácil especialmente porque, com a ajuda dos meus vizinhos, brincadeiras destas são jogos de crianças. Lembro-me que já a noite ia desesperadamente longa e, enquanto uma Francesa e duas Polacas esperavam por mim entre o meu quarto e a porta do apartamento para continuarmos a alcoolemia noutro sítio, eu mirava entretido a prateleira onde guardo o pão e perguntava-me o que teria acontecido à apetitosa baguette que tinha comprado durante a tarde, ignorando por completo o rebanho de pequenas migalhas que banhava a mesa, junto a um pacote de manteiga devastado. Acontece então que, como é normal, o meu dia seguinte foi facilmente suportado à base de resumos de textos monocórdicos sobre integrações empresariais e uma grande chávena de chá a pedir recarga a cada trinta minutos. Como rapaz nervoso que sou, assim que me chateio de estar em casa a estudar vou ao supermercado. É recorrente encontrar gente que conheço por lá e é também bastante normal dizer que sim "vamos lá para os copos esta noite" de cada vez que mo perguntam. Sai-me naturalmente, é coisa que não evito, dizer que sim a conversas que não levam a lado nenhum regada por algumas cervejas. Ora, hoje devia tê-lo evitado. Ela tem os queijos como testemunha, sei que lhe disse que íamos comprar qualquer coisa à simpática senhora do Imbiss chinês ali da esquina, que não nos podíamos esquecer dos pauzinhos - porque tem muito mais piada comer comida desconhecida com objectos desconhecidos - e que quando estivéssemos satisfeitos com a comida e fartos da conversa que o meu colchão proporciona, íamos ao bar da residência beber qualquer coisa. E é aqui que eu falho. Porque se às quatro e meia da tarde a ideia de sair à noite para uns copos me parece formidável, é só quando a altura chega que as minhas pernas perdem todas as energias, talvez proporcionadas por uma noite de pouco sono, e tenho de dizer que afinal já não estou para aí virado, vamos dormir? Ou melhor, primeiro digo que não sei, que já te digo. Depois, quando pressionado e enfeitado com adjectivos femininos, digo que não. E depois tenho de ver a cara, neste caso uma cara de menina francesa de olho bonito, virar para a desilusão. Sou bastante parvo, certo? Mas não era disto que eu queria falar. É que depois disto, aconteceu o seguinte.



Tinha desiludido a Anne há coisa de duas horas. Já dormia, ou dormitava. Sei que só entendi que duas horas tinham passado quando, depois do acto relâmpago, olhei para o relógio e voltei a cair em sono profundo. De repente a escuridão do meu quarto é interrompida por uma descarga de luz vinda do corredor, uma figura que se assemelhava à estátua da liberdade, queixo erguido e uma mão estendida no ar - que no lugar da tocha ostentava, pelo cheiro, erva, - e aos meus ouvidos chega um ruído imperceptível. No momento em que me levantei, a figura, perdendo todo a sua postura estóica e ganhando proporções de assombro, larga um pequeno berro e pergunta-me como é que eu consigo dormir de tronco nu em pleno inverno alemão. Eu, ainda sonâmbulo, aponto-lhe para o aquecimento central e pergunto o que raio se pode passar para me acordarem e porque raio é que não fechei a porta à chave. O Ben, era o Ben, entra no quarto, dá uma longa passa na sua tocha, e sem conseguir estar quieto com a cabeça conta-me de trás para a frente a aborrecida história da noite dele, desde que estivemos todos na conversa enfiados no seu quarto, até ao momento em que entrou no meu quarto, regressado do bar da residência. Já no fim, quando eu estava a perder o fio á meada. Pôs a mão no meu ombro peludo - do qual por essa altura já tinha perdido o medo - e disse-me que tinha dito à Vietnamita - ele gosta de achar que a Jin Hee é do Vietname - e à Francesa que me deviam vir cá dar uns beijos para eu ir par o bar com eles. Agradeci-lhe o gesto, e disse que estava com uma vontade incrível de dormir. E aqui vem a parte estranha, porque ele olha para mim e, tentando transmitir um pouco de seriedade aos seus movimentos, diz-me qualquer coisa como "Phaaa... Pedro, és o gajo mais normal que conheço. Até amanhã, paz." Abraça-me, e vai-se embora para o quarto dele onde a namorada o esperava para mais uma noite de um simpático descontrolo nas estruturas do prédio.



Esta história não tem moral. Mas o que é certo é que nunca me tinha visto por esta perspectiva. Sempre quis ser muita coisa que não sou, nos últimos tempos mais do que nunca, e acho que devia definitivamente confrontar-me com o facto de que sou normal. Se calhar é isso, sou o mais normal. Mas normal. E ser normal não é mau, é? Pelo menos não sou anormal, certo? Tenho de investigar melhor. Tem graça. Já vos disse que vou ser investigador? É verdade, e acho que vai ser uma boa experiência. Mas isso fica para amanhã. Ou depois, que não ando com humor para escrever aqui. Afinal de contas, está tudo a acabar. E a verdade é que eu dava tudo para que não acabasse. Haverá algum mal em não querer voltar? Acho que é normal.

5 Comments:

Blogger Helena Borges said...

Não não... tu não és normal! Normais são as pessoas que passam por mim na rua todos os dias...

Tu és um menino mt especial =)

January 18, 2008 at 8:28 PM  
Blogger ups said...

Sim.. erasmus e muito especial. Aproveita cada segundo pois infelizmente nao se volta a repetir.

January 18, 2008 at 10:22 PM  
Anonymous Anonymous said...

ola!!!!

January 20, 2008 at 1:18 PM  
Anonymous Anonymous said...

ola!!
eu chamo me claudia, tropecei no teu blog por acaso! e gostei!o mais engraçado e e qeu tb sou portuguesa d aveiro, e neste momento vivo em stuttgart!faço um estagio leonardo davinci!!curtia conhecer t!s por acaso vieres a stuttgart es acolhido por mais conterraneos!em nossa casa!s eu for a nurenberg e tiveres tempo p um cafe seria mto bom!
beijo e ate mais tarde!!!
o meu mail e claudiassl@hotmail.com

January 20, 2008 at 1:28 PM  
Anonymous Anonymous said...

as viagens têm essa magia tão doce e tão bonita: essa forma sobre-todo-o-natural de nos agarrar com os seus longos braços, de nos fazer acreditar que o para-sempre existe inteirinho nas descobertas de cada mundo, de nos fazer ser realmente Nós de uma forma absurda e perfeita.
não existe "mal" nenhum em nos descobrir-nos além fronteiras. existe, sim, em acharmos que essa descoberta se encerra tão fielmente nas barreiras espaciais do estar longe.
há uns anos atrás, decidi que nunca mais ia deixar de viajar: não podia. e viajo todos os dias, em cada dia. mesmo num domingo como o de hoje, em que raras vezes o meu corpo conheceu a posição vertical.

tens a sorte de perceber alguns mistérios. agarra-os como tudo o que vale a pena agarrar: na tua mão, como se eles fossem do tamanho de um punho cerrado. e não é esse o tamanho daquilo que realmente é importante para nós?;) tu o disseste.

January 20, 2008 at 10:05 PM  

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