#15
A viagem desde Viena era curta mas, com a ajuda de uma extravagante cigana, transformou-se numa alegre jornada. Por norma, um cigano que se senta ao teu lado, quer algo de ti. Sem pedir. A estranha cigana, de nome Simona Balogova, que se sentou no nosso compartimento a meio da viagem para Praga, depois de suplicar por uma foto, não deveria ter diferentes objectivos. Aparentemente, Simona estava a fazer o mesmo em todos os compartimentos do comboio, batendo no vidro, pedindo gentilmente uma foto, sentando-se ao lado das pessoas, falando (sempre, sempre, sempre, num obviamente imperceptível Checo), falando, sorrindo com os seus dois dentes caninos de ouro (e quando descrevo os dentes, a facilidade é muita, uma vez que eram os únicos que possuía dentro dos seus extremamente pintados lábios), escrevendo coisas no meu bloco de notas.
Quando o revisor notou a presença de Simona, fechou-a dentro de um compartimento vazio. Quando Simona se viu fechada dentro do compartimento, activou o travão de emergência. Quando o comboio parou, um revisor furioso explodiu com Simona. Quando Simona é atacada, Simona responde. Quando o comboio, em marcha lenta, chega a um pequeno apiadeiro Checo, o revisor atira Simona para fora do comboio. Simona entra. O revisor põe as malas de Simona fora do comboio. Simona sai, pega nas coisas, e atira para dentro do comboio. O revisor berra com Simona. Simona morde, bate, berra e bate outra vez no revisor. O comboio está parado, os vidros estão fumados por passageiros curiosos e sorridentes com a pictórica cena. A polícia chega. Simona corre. Simone cansa-se. Simona volta, sorri aos passageiros com os seus dois dentes, berra qualquer alarvidade ao revisor e entra no carro da polícia. Divertido, no mínimo.
São dementes, os sentimentos que me correm pelas veias de cada vez que penso nos vinte e dois dias que passei percorrendo um continente que encerra num tão pequeno espaço uma quantidade extravagante de diferentes modos de construir cidades, cultivar relações, pensar e sentir, cantar, chorar, sorrir e pesar. Diferentes modos de viver, sempre relacionados por pequenos fios que fomentam a razão para vivermos no mais amado continente do mundo. E isto ninguém nos tira.
Do mesmo modo, ninguém me vai tirar nunca as recordações que guardo de três semanas incríveis, em que conheci mais do que esperava, sorri mais do que podia querer, vivi mais do que tinha vivido até aqui. O calor de Madrid, o brilho da Torre Eiffel, o sonho do Fórum Romano, a beleza da Ponte Vecchio e dos canais de Veneza, a plenitude de Ljubljana e do lago Bled, o incrível azul do mar de Split e Dubrovnik, a alegre confusão da incrivel Kotor e da pacata Budva, o amor para sempre por Sarajevo e Mostar, a incansável chuva de Budapeste, a perfeita imponência de Viena e, por fim, Praga. Praga. Praga.
A Capital Checa é um sonho. De músculos entorpecidos pela quantidade incrível de quilómetros que tínhamos percorrido a pé durante todo o interrail, o deleite de Praga fez com que respirássemos fundo e a percorrêssemos com ainda mais força do que seria normal. A ajudar, a chuva tinha finalmente cessado, o sol via-se entre as nuvens de algodão, o Moldava a embalar nas suas águas uma cidade com maravilhosos jardins, uma infinidade de arquitecturas diferentes que vestem todos os prédios da cidade com um cuidado inacreditável, majestosas árvores em todos os passeios, artistas de rua sem fim, um bairro judeu que nos faz estremecer, pensando como a crueldade de Hitler foi capaz de dizer «Este fica de pé, como memória. Será o único em todo o mundo».
Somos abraçados por enormes igrejas góticas, estátuas de arrepiar, uma extraordinária Charles Bridge, um magnífico e confuso Relógio Astronómico, uma imponente Staroměstské náměstí recheada de pequenas bancas e tendas a apoiar a meia maratona de Praga. Somos levados pelo Castelo, pelo Staré Město, pelo Nové Město, pela cópia da Torre Eiffel ou pela mágica Dancing House.
Mas mais que tudo, somos completamente levados por uma atmosfera inexplicável, de respeito por aquela cidade, de carinho, mesmo que a grande maioria dos seus habitantes sejam pessoas extremamente antipáticas, excepção feita ao simpático Viktor da livraria inglesa, ao amor da minha vida de seu nome Miklo, que com as suas mãos de fada me ia servindo canecas de agradável cerveja e, pois claro, ao Tiago, o Português que parou a sua bicicleta a meio da ponte, para adivinhar que também nós éramos Lusos, apesar de estarmos vestidos de modo completamente aleatório e de nos termos mantido calados nos minutos anteriores.
As noites foram divididas entre passeios, um agradável jantar no Restaurante Golem, com a enorme figura da estátua judia e um simpático pianista checo a acompanhar a fantástica cerveja doirada Budweiser Budvar e o delicioso prato checo, fogo-de-artifício da Charles Bridge, e a agradável companhia dos ingleses companheiros de quarto com quem relaxamos e conversamos com o Moldava e o Castelo de Praga a preencherem a pintura nocturna.
A cada passo que dei naquela cidade, de cada vez que enchia o peito de ar ou que virava os olhos noutra direcção, um sentimento inexplicável de conforto tomava conta de mim. Sempre tinha ouvido delícias da cidade, mas nunca ninguém me soube explicar porquê. Ter Praga como a ultima paragem deste interrail foi, sem qualquer dúvida, a melhor coisa que eu e a Ana poderíamos ter feito. Como tantas outras, esta cidade entra-nos no sangue, transporta o nosso oxigénio de uma forma mais acelerada e interessante dos pulmões até ao cérebro. No entanto, não é qualquer cidade que nos recebe como se realmente nos quisesse lá, exasperando pelo dia em que nos decidimos a voltar, a pisa-la e toca-la. Praga quer-te bem. Nós queremos Praga.
Há seis anos que sonhava fazer um interrail. Todos os anos, a desculpa para não o fazer era mais elaborada, não o sendo por falta de vontade mas sim porque as minhas férias em Portugal raramente me desapontaram. Apesar de por vezes não ter sido fácil – é certo e sabido que não sou uma pessoa fácil de contentar, aturar, etc. – a minha principal memória deste interrail vai ser sempre a noite em que estávamos sentados em frente à Torre Eiffel, garrafa de champanhe de um lado, sandes do outro e, do nada, numa explosão de luz, ela nos deu as boas-vindas à maior aventura que iria experimentar até então. Passamos fome, comemos excessivamente bem, dormimos mal, sonhamos como crianças, encontramos pessoas antipáticas e os mais doces seres do mundo, chateamo-nos um com o outro, desesperamos, abraçamo-nos e prometemos que íamos sentir a falta um do outro, falhamos o dia da viagem à Albânia, descobrimos Bled, vimos algumas coisas de forma apressada, sobrou-nos tempo para um fim de interrail em três cidades incríveis, aborrecemo-nos, sorrimos, saltamos, explodimos como fogo de cores que ainda não existem por cima do Moldava, queríamos tudo, tivemos tudo, queremos mais, queremos muito mais, mais!
Por volta da uma da tarde, sozinho num compartimento depois da metade do comboio onde a Ana viajava ter seguido com destino a Munique, escrevi que ia ter saudades de tudo, sem excepção. Não conseguia explicar porquê. Lembro-me do resto dessa viagem como se fosse hoje. Desconfortável, excitado, extremamente desperto. Para ajudar a passar o tempo, meti conversa com o indiano que tinha acabado de entrar no compartimento. De quando em vez, mirava à extraordinária paisagem Alemã, campos verdes, uma obscura e espantosa floresta que teimava em não acabar. Cidade, onde está a cidade? Nunca mais chega. Nunca mais chega. O que me espera?
Uma hora depois, por entre alguma chuva e um nervoso bem mais que miudinho, chegava a Nuremberga. E agora, por onde começar?