#15

Praga, 8 e 9 de Setembro de 2007

A viagem desde Viena era curta mas, com a ajuda de uma extravagante cigana, transformou-se numa alegre jornada. Por norma, um cigano que se senta ao teu lado, quer algo de ti. Sem pedir. A estranha cigana, de nome Simona Balogova, que se sentou no nosso compartimento a meio da viagem para Praga, depois de suplicar por uma foto, não deveria ter diferentes objectivos. Aparentemente, Simona estava a fazer o mesmo em todos os compartimentos do comboio, batendo no vidro, pedindo gentilmente uma foto, sentando-se ao lado das pessoas, falando (sempre, sempre, sempre, num obviamente imperceptível Checo), falando, sorrindo com os seus dois dentes caninos de ouro (e quando descrevo os dentes, a facilidade é muita, uma vez que eram os únicos que possuía dentro dos seus extremamente pintados lábios), escrevendo coisas no meu bloco de notas.



Quando o revisor notou a presença de Simona, fechou-a dentro de um compartimento vazio. Quando Simona se viu fechada dentro do compartimento, activou o travão de emergência. Quando o comboio parou, um revisor furioso explodiu com Simona. Quando Simona é atacada, Simona responde. Quando o comboio, em marcha lenta, chega a um pequeno apiadeiro Checo, o revisor atira Simona para fora do comboio. Simona entra. O revisor põe as malas de Simona fora do comboio. Simona sai, pega nas coisas, e atira para dentro do comboio. O revisor berra com Simona. Simona morde, bate, berra e bate outra vez no revisor. O comboio está parado, os vidros estão fumados por passageiros curiosos e sorridentes com a pictórica cena. A polícia chega. Simona corre. Simone cansa-se. Simona volta, sorri aos passageiros com os seus dois dentes, berra qualquer alarvidade ao revisor e entra no carro da polícia. Divertido, no mínimo.



São dementes, os sentimentos que me correm pelas veias de cada vez que penso nos vinte e dois dias que passei percorrendo um continente que encerra num tão pequeno espaço uma quantidade extravagante de diferentes modos de construir cidades, cultivar relações, pensar e sentir, cantar, chorar, sorrir e pesar. Diferentes modos de viver, sempre relacionados por pequenos fios que fomentam a razão para vivermos no mais amado continente do mundo. E isto ninguém nos tira.



Do mesmo modo, ninguém me vai tirar nunca as recordações que guardo de três semanas incríveis, em que conheci mais do que esperava, sorri mais do que podia querer, vivi mais do que tinha vivido até aqui. O calor de Madrid, o brilho da Torre Eiffel, o sonho do Fórum Romano, a beleza da Ponte Vecchio e dos canais de Veneza, a plenitude de Ljubljana e do lago Bled, o incrível azul do mar de Split e Dubrovnik, a alegre confusão da incrivel Kotor e da pacata Budva, o amor para sempre por Sarajevo e Mostar, a incansável chuva de Budapeste, a perfeita imponência de Viena e, por fim, Praga. Praga. Praga.



A Capital Checa é um sonho. De músculos entorpecidos pela quantidade incrível de quilómetros que tínhamos percorrido a pé durante todo o interrail, o deleite de Praga fez com que respirássemos fundo e a percorrêssemos com ainda mais força do que seria normal. A ajudar, a chuva tinha finalmente cessado, o sol via-se entre as nuvens de algodão, o Moldava a embalar nas suas águas uma cidade com maravilhosos jardins, uma infinidade de arquitecturas diferentes que vestem todos os prédios da cidade com um cuidado inacreditável, majestosas árvores em todos os passeios, artistas de rua sem fim, um bairro judeu que nos faz estremecer, pensando como a crueldade de Hitler foi capaz de dizer «Este fica de pé, como memória. Será o único em todo o mundo».



Somos abraçados por enormes igrejas góticas, estátuas de arrepiar, uma extraordinária Charles Bridge, um magnífico e confuso Relógio Astronómico, uma imponente Staroměstské náměstí recheada de pequenas bancas e tendas a apoiar a meia maratona de Praga. Somos levados pelo Castelo, pelo Staré Město, pelo Nové Město, pela cópia da Torre Eiffel ou pela mágica Dancing House.



Mas mais que tudo, somos completamente levados por uma atmosfera inexplicável, de respeito por aquela cidade, de carinho, mesmo que a grande maioria dos seus habitantes sejam pessoas extremamente antipáticas, excepção feita ao simpático Viktor da livraria inglesa, ao amor da minha vida de seu nome Miklo, que com as suas mãos de fada me ia servindo canecas de agradável cerveja e, pois claro, ao Tiago, o Português que parou a sua bicicleta a meio da ponte, para adivinhar que também nós éramos Lusos, apesar de estarmos vestidos de modo completamente aleatório e de nos termos mantido calados nos minutos anteriores.



As noites foram divididas entre passeios, um agradável jantar no Restaurante Golem, com a enorme figura da estátua judia e um simpático pianista checo a acompanhar a fantástica cerveja doirada Budweiser Budvar e o delicioso prato checo, fogo-de-artifício da Charles Bridge, e a agradável companhia dos ingleses companheiros de quarto com quem relaxamos e conversamos com o Moldava e o Castelo de Praga a preencherem a pintura nocturna.



A cada passo que dei naquela cidade, de cada vez que enchia o peito de ar ou que virava os olhos noutra direcção, um sentimento inexplicável de conforto tomava conta de mim. Sempre tinha ouvido delícias da cidade, mas nunca ninguém me soube explicar porquê. Ter Praga como a ultima paragem deste interrail foi, sem qualquer dúvida, a melhor coisa que eu e a Ana poderíamos ter feito. Como tantas outras, esta cidade entra-nos no sangue, transporta o nosso oxigénio de uma forma mais acelerada e interessante dos pulmões até ao cérebro. No entanto, não é qualquer cidade que nos recebe como se realmente nos quisesse lá, exasperando pelo dia em que nos decidimos a voltar, a pisa-la e toca-la. Praga quer-te bem. Nós queremos Praga.



Há seis anos que sonhava fazer um interrail. Todos os anos, a desculpa para não o fazer era mais elaborada, não o sendo por falta de vontade mas sim porque as minhas férias em Portugal raramente me desapontaram. Apesar de por vezes não ter sido fácil – é certo e sabido que não sou uma pessoa fácil de contentar, aturar, etc. – a minha principal memória deste interrail vai ser sempre a noite em que estávamos sentados em frente à Torre Eiffel, garrafa de champanhe de um lado, sandes do outro e, do nada, numa explosão de luz, ela nos deu as boas-vindas à maior aventura que iria experimentar até então. Passamos fome, comemos excessivamente bem, dormimos mal, sonhamos como crianças, encontramos pessoas antipáticas e os mais doces seres do mundo, chateamo-nos um com o outro, desesperamos, abraçamo-nos e prometemos que íamos sentir a falta um do outro, falhamos o dia da viagem à Albânia, descobrimos Bled, vimos algumas coisas de forma apressada, sobrou-nos tempo para um fim de interrail em três cidades incríveis, aborrecemo-nos, sorrimos, saltamos, explodimos como fogo de cores que ainda não existem por cima do Moldava, queríamos tudo, tivemos tudo, queremos mais, queremos muito mais, mais!



Por volta da uma da tarde, sozinho num compartimento depois da metade do comboio onde a Ana viajava ter seguido com destino a Munique, escrevi que ia ter saudades de tudo, sem excepção. Não conseguia explicar porquê. Lembro-me do resto dessa viagem como se fosse hoje. Desconfortável, excitado, extremamente desperto. Para ajudar a passar o tempo, meti conversa com o indiano que tinha acabado de entrar no compartimento. De quando em vez, mirava à extraordinária paisagem Alemã, campos verdes, uma obscura e espantosa floresta que teimava em não acabar. Cidade, onde está a cidade? Nunca mais chega. Nunca mais chega. O que me espera?



Uma hora depois, por entre alguma chuva e um nervoso bem mais que miudinho, chegava a Nuremberga. E agora, por onde começar?

#14

Viena, 6 e 7 de Setembro de 2007

Esta viagem Budapeste-Viena está a mostrar-se encantadora. Apesar das nuvens, por onde o sol se decidiu mostrar por breves segundos, a paisagem verde-oregãos, o livro de Michael Chabom que estou a ler e se está a revelar uma agradável surpresa e a música que me chega aos ouvidos de forma deliciosamente aleatória, estão a fazer com que o meu estado de espírito seja de simples deleite. Ao mesmo tempo, penso como gosto do miúdo, que ainda não nasceu. É um sentimento estranho. Bem, vamos desfrutar a viagem. Até já.



Terminada uma viagem de três horas num comboio alemão impecável, encontramos uma Viena chuvosa. No entanto, esta cidade deslumbra pela quantidade de verde em todas as ruas, pelas pessoas que apesar de serem imensas vagueiam calma e distraidamente pela cidade, formando, em conjunto com a espantosa arquitectura, uma atmosfera descontraída, clássica e triunfal que, sem pressas, se apodera involuntariamente de nós.



Depois de ir atrelado à Ana numa visita ao museu da Imperatiz Elisabete, refugiamo-nos da chuva dentro do Tram circular que passa pelos pontos fortes da capital austríaca. Uma, duas, três voltas. Decididamente não queríamos sair de dentro do confortável eléctrico. Pela noite, um concerto memorável com composições de Strauss e Mozart, onde cinco cantores de ópera causavam calafrios a cada palavra que debitavam, ao mesmo tempo que as nossas mentes subiam aos píncaros. Indescritível.



No dia seguinte, fugindo a chuva, outro museu, este mais a meu gosto, a KunstHausWien. Uma longa viagem feita à chuva até ao distante museu, mas nitidamente vantajosa. Friedensreich Hundertwasser, pintor, escultor, arquitecto, uma mente fantástica. Com o seu discurso e acção anti-racionalista, Hunderwasser criou obras arquitectónicas fantásticas, a fazer lembrar uma fusão entre as obras de Gaudi e as de Tim Burton. A sua linha filosófica abominava tudo o que fosse abjecto à natureza, linhas rectas, destruição, construção que não fosse feita em conformidade com a coerência natural das coisas. Devolver à natureza tudo o que ela nos dá a nós. Utópico, mas bom.



Não gosto de descrever pensamentos de outros, primeiro porque não os sei tão bem como devia e depois porque nunca vou conseguir dizer o mesmo, sem me remeter à cópia. Por isso, por favor, se forem a Viena, visitem este museu, apaixonem-se por cada quadro, cada ideia, cada frase inscrita nas paredes. O chão não é plano mas sim construído em ondas, porque o chão plano é uma falsidade criada pelo homem. No entanto, se algum de vocês se sentir tonto à medida que percorrem os três pisos do museu de Hunderwasser, podem ter a certeza que a tontura não teve origem no chão, mas sim na quantidade de ideias monumentalmente simples que um só homem concebia dentro de si.



Mas nem só da KunstHausWien se fez este dia. Depois de um jantar tipicamente Austriaco, servido por uma bruta mas sorridente empregada, veio a chuva. Depois da chuva veio a visita curta, e um pouco entediante a um museu de Freud que se limita a mostrar uma biografia fotográfica completamente inútil para quem procura aprender um pouco que seja sobre o seu trabalho. Depois do museu do Freud um simpático café de uma senhora francesa, ternamente decorado do qual não nos apetecia sair. E depois, o Papa.



Pelos cartazes nas ruas, onde o Papa Bento (ou aquela criatura simpática do Star Wars) aparecia abraçado a todas as crianças que tinha a sua volta, já tínhamos compreendido que Sua Santidade Estelar estava por terras de Heidi. Depois de questionarmos um repórter fotográfico sobre o paradeiro do Papa, percorremos os jardins do palácio em busca do sítio por onde o Quase Jesus iria estar. Uma multidão aguardava. Gente de todas as idades, jovens envergando camisolas do Papa Bento, vendendo DVDs, senhoras de terço na mão, dois portugueses excitados por, perdido o Papa em Roma, o encontrarem em Viena. Ouvem-se helicópteros, penso que o Papa vai saltar de um deles a qualquer momento. Falso alarme.



Polícias amontoam-se à nossa frente, no gradeamento. Militares preenchem os telhados, de binóculos nos olhos, como procurando meninas austríacas em trajes menores dentro das janelas do palácio. Uma limusina, outra limusina, gente de fato, muita gente de fato. De repente, um carro branco com uma pequena bandeira do Vaticano em cada extremo do capo aproxima-se, a nossa câmara começa a filmar, eu começo a cantar que estou guiado pela mão com o Jesus eu vou, e sigo como ovelha que encontra o pastor. Mas quem segue é o carro, para dentro do edifício. Do Papa, apenas uma pequena cabeça, mais nada. O Papa não nos bateu as palmas. O Papa não ama a Jesus. Fica a recordação e muitas gargalhadas divinas. Vi a cabeça do Papa a vinte metros de mim.



À noite, decidi meter conversa com o fantástico casal Norte Americanos de S. Francisco que connosco partilhava o quarto e com os sempre simpáticos recepcionistas Australianos. É extraordinário como me sinto pequeno, tacanho, de cada vez que falo com gente como estes quatro aventureiros, que cansados de estar no seu país, decidiram largar tudo, uns para trabalharem na Republica Checa e outros para percorrerem o mundo trabalhando em estâncias de ski, pousadas e tudo mais. Gostava de ter coragem para fazer o mesmo. E como me disse o Leo, são mais que muitas as pessoas que dizem que “Gostavam”, que “Queriam”, parem de dizer e façam! Pois bem.



Para o resto da noite, seguimos para uma feira popular fantasma, algo assustadora, na periferia da cidade, desapontados, seguimos para o centro onde descobrimos uma outra Viena, com mais vida, mais energia, igualmente deslumbrante.



Foi uma estadia fantástica numa cidade que vou tentar visitar novamente no inverno, quando a neve a pintar de cores mais meigas. Não é mito, ou colorido de quem conta, Viena é mesmo uma cidade atraente, pacífica mas magnifica. Não fazia parte dos meus planos visitar as três últimas cidades deste Interrail, pensei que não havia tempo. Fico contente que o tenha feito. Agora, sim, finalmente, venha Praga, a aventura de vinte e dois dias pelo velho continente, de mochila com calças que fazem as senhoras de idade benzerem-se três vezes, com três t-shirts, três meias, três boxers e três milhões de recordações está mesmo a terminar!

#13

Budapeste, 4 e 5 de Setembro de 2007

Saí de Mostar quando o relógio mostrava as seis e meia da tarde. Cheguei a Sarajevo às nove da noite. Vinte minutos depois, partia para Zagreb, onde despertava por volta das sete da manhã e de onde partia às sete e vinte. Pelo meio, muito se dormiu, viu-se chouriços e pão serem apreendidos por guardas alfandegários, cambaleou-se pela estação de Zagreb de ar ensonado, chinelos nos pés e sapatos das mãos, envolvido no calor e conforto de um saco cama que por vezes se mostrava como o melhor amigo de um viajante. Por volta das duas e meia da tarde, já me encontrava em Budapeste.



Depois de todo o calor que nos tinha acompanhado por todo o Interrail, excepção feita a uma Paris chuvosa como um doce duche pela manhã e à glacial mas sempre apaixonante Sarajevo, foi com muitas nuvens e chuva que chegamos em Budapeste. Certamente por isso, a minha imagem da cidade ficou condicionada a um céu cinzento que não sabia envolver a perfeição e excelência que cada canto escondido da capital do Leste Europeu nos tem para oferecer. Não obstante da chuva, a entrada em Budapeste impressiona, a cidade envolve-nos com facilidade, por entre a sua mistura de um imperialismo Parisiense e um ambiente Londrino, extremamente fácil de nos encantar. Um parlamento inspirado em Westminster, avenidas sem fim onde se podem contar tantos carros como zonas arborizadas, pequenos parques de um verde especial, cercados por edifícios construídos pela riqueza de um império Austro-húngaro que ainda se vive na capital da Hungria. Ruas para pedestres com lojas para todos os gostos, galerias comerciais ao estilo de Milão, uma população cosmopolita que se veste à Parisiense mas onde a roupa esconde corpos e caras que, com certeza, deixam muito Húngaro sem dormir noites a fio. À noite, num dos muitos restaurantes decorados com um bom gosto impecável, comi o primeiro bife tártaro da minha vida. Deliciei-me.



Vidros escuros, chão negro pintado de nuances brancas, sofás de veludo, papel de parede com um motivo preto e castanho, cadeiras azul-turquesa, candeeiro com plumas pretas, rosas brancas em cada mesa, drum&bass a criar o resto do ambiente, eis o bar onde tomei um pequeno mas delicioso pequeno-almoço. Apesar de gostar sítios mais confortáveis, onde possa por um dos pés por baixo do meu corpo, onde não me tenha que sentir observado a todo o momento, onde a minha má educação não venha ao de cima, foi com um extremo agrado que ali comi pela manhã, dando graças a quem tornou Budapeste numa capital, por ora, extremamente barata.



Pelo resto do dia, manso graças a um pequeno projecto de constipação, decidimos fazer uma visita guiada pela cidade, num daqueles autocarros turísticos. Foi a minha primeira vez em tal preparo, uma vez que geralmente prefiro andar e descobrir as coisas por mim mesmo, mas não há como ficar indiferente a um senhor velhinho que conta, com os seus textos de certo repetidos até ao infinito em inglês e alemão, histórias de Budapeste e da sua vida à medida que percorre cada uma das ruas da cidade. Durante o resto do dia, depois de um fantástico Goulash, choveu como se fosse o último dia em que podia chover nesta terra de interrailers e viajantes sem destinos, mas mesmo assim a imponência e a energia da bela Budapeste acompanharam-nos sempre, fazendo-nos esquecer que em quatro dias, o interrail chegaria ao fim.

#12

Mostar, 3 de Setembro de 2007

Uma cidade massacrada pelo exército jugoslavo. Uma cidade massacrada pelo conflito do próprio povo. Uma cidade que serviu de símbolo para o mundo das consequências da guerra dos Balcãs. Uma cidade reconstruída do nada. Um rio de águas cristalinas. Uma ponte como símbolo da união entre os povos. Uma zona antiga apaixonante. Um povo a que não se fica indiferente. Catorze postais, porque não tinha mais moradas. Catorze saudades e catorze recordações para sempre de que ali, naquele momento, não precisava de mais nada para me sentir afortunado. Era uma vez Mostar.



Depois de uma noite de peripécias engraçadas, que começou com uma necessidade exasperante de beber água e terminou com o recepcionista nocturno do hotel a bater de forma insistente à porta do nosso quarto enquanto dizia “Hey Ronaldo, I give you water!”, despertamos às cinco da manhã para apanharmos o primeiro comboio para Mostar, onde iríamos passar o dia antes de seguirmos para Budapeste.



A cidade de Mostar simboliza a guerra na Bósnia. Primeiro, vieram os Jugoslavos, cegos de raiva por uma Bósnia que gritava pela independência, pela sua própria identidade. Depois veio o conflito interno, inexistente durante séculos afim, quando os Bósnios Croatas decidiram desencadear uma guerra pela posse da cidade, até ali partilhada com a população Muçulmana. A igreja ortodoxa de um lado do rio. Os pacatos islamitas do outro. Uma cidade histórica destruída. Para assinalar a realidade da divisão provocada pelo conflito, a Stari Most, a magnífica e imponente ponte cã que dá o nome à cidade, é destruída. Milhares de pessoas como eu e tu, mortas.



Passaram-se mais de dez anos desde o fim do conflito. Há três, a ponte foi restituída ao seu lugar divino. A cidade respira alegria, uma enorme excitação por todos os estrangeiros que a visitam e uma incrível serenidade por parte dos que lá vivem – uma vez mais, ortodoxos e muçulmanos convivem diariamente numa harmonia intrigante.



Mas o dia começou logo de forma ternurenta, com uma viagem fantástica de hora e meia entre Sarajevo e Mostar. De volta aos comboios, depois de um interregno de alguns dias, aprontei-me a meter conversa com os dois Bósnios que partilhavam connosco a cabine. A ideia não podia ter sido melhor. Ela devia rondar os trinta e cinco, ele os cinquenta. Nenhum deles falava inglês e, para dificultar ainda mais as coisas, ela era surda. No entanto, confesso que foram as duas pessoas que mais prazer me deu conhecer em todo o Interrail.



Sempre com muitos gestos, sons e palavras bósnias, portuguesas, alemãs e inglesas pelo meio, passamos noventa minutos fantásticos, com pessoas que viveram a guerra por dentro, que dela falavam com um brilho nos olhos, que quase nos obrigaram a ir a Medugorje, um local de culto católico semelhante a Fátima, que queriam saber coisas sobre Portugal, que sorriam abertamente quando pensavam no nosso futebol, que em pouco tempo pareciam ser já os nossos melhores amigos. Tenho a fotografia de ambos aqui no quarto, conforta-me saber que há pessoas assim.



Depois veio o dia passado em Mostar. A cidade foi completamente destruída pela guerra, pouco ou nada sobrando. E no entanto, apenas se pode ver um prédio com marcas sérias da guerra. Tudo o resto foi reconstruído, com uma nota especial para a deslumbrante zona antiga, ao estilo islâmico de Sarajevo mas sempre contornando o pequeno rio Neretva que imperturbavelmente nos leva até a Stari Most. E é da bela Stari Most, a trinta metros de altura das águas geladas do Neretva, que os Mostari saltam a troco de Euros e Marcos Convertíveis, num espectáculo que assusta qualquer um e que nos deixa a divagar sobre a pouca coragem ou o enorme bom senso que a maior parte de nós possui.



Foi desta pequena cidade que mandei postais a todos aqueles que me tinham dado a sua morada. Onde um grande hotel se enche de balas mas onde tudo o resto parece ter sido feito de encomenda para o nosso pequeno paraíso na terra, onde falei com um homem que foi brutalmente massacrado num campo de concentração sérvio mas que não perdeu nunca o enorme sorriso com que me contou a sua história, onde o pequeno Neretva e as belas casas de telhados baixos nos embalam para sonhos de um país que me vai deixar com mais saudades que qualquer outro que visitei neste interrail. Foi daqui que matei um pouco das saudades que tinha de todos, imaginando que convosco conversava. Espero que não se esqueçam porquê.

#11

Sarajevo, 2 de Setembro de 2007

Devastado. É como me sinto, depois de receber uma dolorosa bofetada à chegada aquele que era o destino que mais aguardava em todo o interrail. Dor aguda, tristeza desmedida e, ao mesmo tempo, um carinho especial pelo país começa a crescer dentro de mim, apaixono-me. Pede-se ao amor que seja doloroso, este pesa mais do que qualquer coisa que jamais havia experimentado. Bem-vindo à Bósnia, se eu tivesse nascido país em vez de homem, era assim que queria ser.



A saída do Montenegro fez-se pelo monumental Parque de Durmitor. Uma viagem de oito horas dentro de um autocarro pode-se tornar sinónimo de desespero, mas esta ligação entre Budva e Sarajevo vai para sempre deixar saudades. Teriam passado à volta de três horas de viagem quando a paisagem se altera radicalmente, da cansativa paisagem desértica, entramos numa zona de pequenas colinas repletas de um verde que nunca vi, salpicada por pequenas casas e uma confortável bruma a estabelecer o ambiente perfeito. Volvidos alguns minutos, a estrada perde metade da sua largura, havendo espaço para o autocarro, alguns bodes de quando em vez, e pouco mais. Depois, surgem os infinitos Canyons ora a terminarem em águas paradas azul-celeste ora a darem lugar a rápidos assustadoramente perigosos. O autocarro teima em fugir para a ravina, por uma vez, enormes pedras a meio de uma curva, em plena descida, fazem com que o condutor trave a fundo para evitar um fim pior para este interrail. Não houve uma pessoa naquele autocarro que não sentisse medo em algum ponto da viagem, mas duvido que tenha havido alguém que se importasse com o seu pavor, tal era a beleza da paisagem que nos consumia segundo a segundo, que me hipnotizava e que tão bem me preparou para dois dias numa terra que não merece nada daquilo por que passou.



Passei a fronteira, estava finalmente na Bósnia-herzegovina. As pequenas estradas deram lugar a pequenas estradas com aluimentos ou crateras de morteiros. Mas era apenas o inicio. Porque depois vieram as pequenas populações ao longo de toda a estrada desde Durmitor até Sarajevo, e acreditem quando vos digo, parte o coração.



Em Kotor, o Leo tinha-nos contado a história de um amigo que tinha visto os soldados sérvios entrarem pela sua casa dentro e morto, um por um, os seus pais e o seu irmão. Foi esta imagem que se desbobinou nos meus olhos, uma e outra e ainda outra vez, a cada momento que via uma casa completamente destroçada por buracos de balas, morteiros, mais balas e ainda mais balas. É inacreditável. O Homem é sem dúvida um animal maldito, pois não há animal que cometa atrocidades daquele tamanho. Casas arruinadas, casas reconstruídas tijolo a tijolo, ainda com plástico a substituir os vidros e placas de zinco a substituir as portas. E pensar que tudo aquilo foi feito por pessoas com capacidade de decidir, se querem matar as famílias que habitam naquela casa ou não. É preciso um estômago muito forte para ver paredes caiadas a balas, tentar não imaginar a quantidade estupidamente megalómana de gente que ali padeceu. Mas mais que isso, é preciso ter um coração fantástico para passar por cima daquilo tudo. E é isso que cada Bósnio tem dentro de si.



Dentro de todas as casas destruídas há famílias uma vez mais. Há volta de cada uma dessas casas há jardins, pequenas hortas, baloiços, jardins, bonitas cercas, crianças que não se cansam de brincar, adultos que não se cansam de sorrir. Não fossem as paredes e tudo aquilo que está escrito, ninguém diria que há dez anos aquele país vivia na miséria de uma guerra obtusa. As lágrimas enchem os olhos. Perturbador, pelo bom e pelo mau, por tudo.



A chegada a Sarajevo mostrou mais do que já tínhamos visto, mas numa escala absurda. Em prédios com trinta ou quarenta andares, as varandas povoadas de roupa a secar lutam dentro da nossa retina com as enormes crateras com as quais partilham todas as paredes do edifício, de cima a baixo. E esta imagem repete-se, e repete-se, e repete-se, mas cessa.



Durante a viagem, reservamos um quarto numa pequena pensão, em pleno centro de Sarajevo. E se a pensão foi uma delicia para os olhos e para o corpo, com uma decoração turca que, apesar de algo extravagante, ser um mimo para o viajante cansado e temendo o pior, se a amigável Gina se mostrou uma fantástica anfitriã e mesmo se os chocolates deixados nas almofadas nos deixaram ainda mais enternecidos, nada vai bater na minha mente o impacto que o centro de Sarajevo me causou.



Imaginava Sarajevo como uma pequena e amigável cidade no meio de pequenos vales verdes, com destroços de guerra e alguns memoriais para visitar. Decerto não esperava que Sarajevo fosse uma Istambul em miniatura, com pequenas casas de pedra com telhados baixos e negros a pintarem cada um dos lados para o qual olhava, com inúmeras mesquitas e minaretes, com as mais belas mulheres que vi na minha vida, mulheres de burca, homens de longas barbas, vendedores de metais, de roupa, de bugigangas, de saborosos cevabs, iogurte e café turco. Não imaginava que ia ficar apaixonado pela maneira como Católicos, Islamistas, Ortodoxos e Judeus coabitam juntos numa harmonia que enternece. O centro da cidade, com as suas pequenas ruas atapetadas por grandes e pequenos seixos, borbulha de vida e de agitação, um mercado ao ar livre, uma confluência de religiões onde a todos é permitido ser aquilo que realmente é. Os buracos das balas continuam a pintar os edifícios. Cinemento vermelho preenche os espaços onde morteiros explodiram no chão, ali aniquilando uma vida. Pela forma que recheiam no chão onde jazem, chamam-lhes Rosas de Sarajevo.



Quem nunca lá foi, está a perder a experiência de uma vida. Um pouco de mim ficou por entre aquelas colunas verdes onde descansa Sarajevo, um pouco de mim percorre agora a atmosfera de encanto que preenche toda uma cidade que não sabia existir. E de certo, um pouco de Sarajevo veio comigo e comigo para sempre vai ficar.

#10

Budva, 1 de Setembro de 2007

Estou a nadar em pleno Mar Adriático, de um lado o céu índigo salpicado por pequenas nuvens brancas que ameaçam desaparecer num pequeno susto e do outro um areal castanho acompanhado por uma escarpa pintada de verde. Por baixo de mim, a dez ou vinte metros de distância, uma formação rochosa causa-me uma das maiores sensações de vertigens que jamais tive, fruto de uma água límpida que me mostra todos os peixes e corais que habitam nestas águas cor de pérola na praia de Mogren.



Estou na Riviera de Budva, o destino balnear mais famoso de todo o Montenegro, frequentado também por muitos Croatas e Sérvios que procuram um bom, barato e translúcido descanso. Budva faz-me recordar um pouco do Algarve da minha infância, com as suas construções toscas e desprovidas de qualquer sentido, um mar de gente que habita as praias e uma parafernália de tendas com tudo para vender ao longo de toda a marginal. Cassetes de sucessos tradicionais montenegrinos que ostentam na capa fartos e lustrosos bigodes, nas ruas, incontáveis Mercedes, Humms e Mustangs sem fim, consequência directa de uma máfia estabelecida na Sérvia com dinheiro de sobra para viver à Rei por estas terras, pessoas simpáticas mas sempre um pouco rudes, peixe grelhado e uma confusão própria de um país acabado de nascer. E no entanto, foi-me impossível ficar indiferente àquela praia e às pessoas que por ali conheci.



Mais do que a água, a aventura de andar quinze minutos entre rochas e mar aberto, numa tentativa infrutífera de chegar a outra praia mas com a agradável surpresa de encontrarmos uma vista fantástica, partilhada por pessoas que saltavam de um rochedo a vinte metros de altura, foi algo de inesquecível. Tive pena de não saltar, mas a façanha de chegar aquela zona deserta, depois de muitas escorregadelas e experiencias de quase morte já tinha sido de mais para mim.



De Budva ficam também saudades da noite que durou horas e horas sem fim, na companhia dos outros backpackers que connosco partilhavam a pousada. Guitarras, idas sem fim à mercearia noctura do Djoko (um simpático Montenegrino de homossexualidade reprimida) em busca do liquido dourado, conversas imensas com a bela Katie e com o recatado homem de Hong Kong que, com os seus quarenta e dois anos, decidiu largar tudo para dar a volta ao mundo. No final, fiquei um pouco desapontado com a cidade, esperava mais luz, mais festa, mais. Mas no entanto, esta estadia valeu pela água onde nadei, pelas rochas que escalei e pelas magníficas pessoas que conheci através de jogos e dois dedos de conversa. Venham mais dias como este.

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