#40

Nürnberg, 26 de Janeiro de 2008

Delicioso. Ouvir as diferentes combinações das camadas que uma música que conhecemos de trás para frente tem é, outra vez, delicioso. E o vídeo, amigos, o vídeo é uma delícia, mesmo que só o vejam com o acompanhamento da sexta camada. As minhas duas próximas semanas podiam ser assim, calava o exame de Strategic & Operations Management na terça-feira, seguía o mesmo raciocínio para os exames de Foundations of Business Administration e International Management with Case Studies na quinta feira, e era um rapaz feliz nas suas duas últimas semanas como ERASMUS.



O quarto está meio despido. Nos intervalos do estudo e das leituras de artigos vou tirando as fotografias que pintaram as paredes por cinco meses, arrumando o que quero levar e o que por cá vai ficar. Dia oito estou de volta, para o bem e para o mal, vão ter de levar comigo outra vez. Passou num instante. Ainda está a passar digo. Mas já toda gente se olha como se isto estivesse a acabar, já se dão abraços de despedida prolongada, já se combinam visitas lá para Março, Agosto e afins. E também já se prepara o que virá após as duas semanas. Vou fazer um trabalho de investigação sobre detecção de tendências em blogs. Tenho lido bastantes artigos de investigação científica e, estranhamente, tenho retirado algum prazer disso. Vou fazer um trabalho não remunerado mas vou a cima de tudo - penso, espero - gostar de o fazer. A ver. E agora calo-me, que não estou com grande espírito para escrever. Uma vez mais, delicioso.

#39

Nürnberg, 21 de Janeiro de 2008

Foi há oito anos. Para os mais velhos pode não parecer muito, mas para mim é mais de um terço da minha vida. Sim, já foi há muito tempo. Foi a Diana. Onde é que ela estará hoje? Porque é que as pessoas perdem o contacto uma das outras com tanta facilidade? Ela tinha-te em grande estima, sabes disso, certo? Aquela miúda nunca falhou. Passou a Diana e ficamos nós. Veio uma e outra e ficamos nós. Apareceu a música, começaram os concertos, os festivais e as tendas partilhadas. Tem graça pensar como corríamos pela poeira fora, permanecíamos deliciados durante horas e horas por baixo de um sol de fornalha só para sentir um pouquinho mais do que todos os outros. Enquanto os oito anos passavam, era em ti que eu descarregava tudo o que me ficava entalado cá dentro. Nunca falhaste. Não merecias, ninguém merece. Que cliché tão verdadeiro, não é? Merda. Não te posso dar um abraço e dizer que vai ficar tudo bem, mas posso-te deixar uma mão amiga a tentar forçar um sorriso. Este é para ti.



#38

Nuremberga, 18 de Janeiro 2008

Tinha desiludido a Anne há coisa de duas horas. Tenho de me lembrar diariamente que não se fazem promessas, porque acabamos sempre por não cumpri-las. Eu, mais do que ninguém, devia sabê-lo. A meio da tarde, por entre filas intermináveis de queijo Gouda e compotas biológicas, ela apanhou-me distraído e largou um dos seus sorrisos de criança. "Ontem exagerei um bocado na bebida, não?", perguntei-lhe enquanto tentava decifrar que levar para quando a fome apertar a meio do dia. Ela soltou uma gargalhada, revirou os olhos e continuou o seu caminho em direcção aos congelados. Eu segui-a. Sim, a noite anterior tinha começado ainda o sol ia alto. Era o último dia antes de começar a maratona de duas semanas de estudo intensivo para os exames e eu comprometi-me a não saber de cor o meu número de telemóvel alemão por volta da hora de jantar, o que, devo confessar, foi uma tarefa fácil especialmente porque, com a ajuda dos meus vizinhos, brincadeiras destas são jogos de crianças. Lembro-me que já a noite ia desesperadamente longa e, enquanto uma Francesa e duas Polacas esperavam por mim entre o meu quarto e a porta do apartamento para continuarmos a alcoolemia noutro sítio, eu mirava entretido a prateleira onde guardo o pão e perguntava-me o que teria acontecido à apetitosa baguette que tinha comprado durante a tarde, ignorando por completo o rebanho de pequenas migalhas que banhava a mesa, junto a um pacote de manteiga devastado. Acontece então que, como é normal, o meu dia seguinte foi facilmente suportado à base de resumos de textos monocórdicos sobre integrações empresariais e uma grande chávena de chá a pedir recarga a cada trinta minutos. Como rapaz nervoso que sou, assim que me chateio de estar em casa a estudar vou ao supermercado. É recorrente encontrar gente que conheço por lá e é também bastante normal dizer que sim "vamos lá para os copos esta noite" de cada vez que mo perguntam. Sai-me naturalmente, é coisa que não evito, dizer que sim a conversas que não levam a lado nenhum regada por algumas cervejas. Ora, hoje devia tê-lo evitado. Ela tem os queijos como testemunha, sei que lhe disse que íamos comprar qualquer coisa à simpática senhora do Imbiss chinês ali da esquina, que não nos podíamos esquecer dos pauzinhos - porque tem muito mais piada comer comida desconhecida com objectos desconhecidos - e que quando estivéssemos satisfeitos com a comida e fartos da conversa que o meu colchão proporciona, íamos ao bar da residência beber qualquer coisa. E é aqui que eu falho. Porque se às quatro e meia da tarde a ideia de sair à noite para uns copos me parece formidável, é só quando a altura chega que as minhas pernas perdem todas as energias, talvez proporcionadas por uma noite de pouco sono, e tenho de dizer que afinal já não estou para aí virado, vamos dormir? Ou melhor, primeiro digo que não sei, que já te digo. Depois, quando pressionado e enfeitado com adjectivos femininos, digo que não. E depois tenho de ver a cara, neste caso uma cara de menina francesa de olho bonito, virar para a desilusão. Sou bastante parvo, certo? Mas não era disto que eu queria falar. É que depois disto, aconteceu o seguinte.



Tinha desiludido a Anne há coisa de duas horas. Já dormia, ou dormitava. Sei que só entendi que duas horas tinham passado quando, depois do acto relâmpago, olhei para o relógio e voltei a cair em sono profundo. De repente a escuridão do meu quarto é interrompida por uma descarga de luz vinda do corredor, uma figura que se assemelhava à estátua da liberdade, queixo erguido e uma mão estendida no ar - que no lugar da tocha ostentava, pelo cheiro, erva, - e aos meus ouvidos chega um ruído imperceptível. No momento em que me levantei, a figura, perdendo todo a sua postura estóica e ganhando proporções de assombro, larga um pequeno berro e pergunta-me como é que eu consigo dormir de tronco nu em pleno inverno alemão. Eu, ainda sonâmbulo, aponto-lhe para o aquecimento central e pergunto o que raio se pode passar para me acordarem e porque raio é que não fechei a porta à chave. O Ben, era o Ben, entra no quarto, dá uma longa passa na sua tocha, e sem conseguir estar quieto com a cabeça conta-me de trás para a frente a aborrecida história da noite dele, desde que estivemos todos na conversa enfiados no seu quarto, até ao momento em que entrou no meu quarto, regressado do bar da residência. Já no fim, quando eu estava a perder o fio á meada. Pôs a mão no meu ombro peludo - do qual por essa altura já tinha perdido o medo - e disse-me que tinha dito à Vietnamita - ele gosta de achar que a Jin Hee é do Vietname - e à Francesa que me deviam vir cá dar uns beijos para eu ir par o bar com eles. Agradeci-lhe o gesto, e disse que estava com uma vontade incrível de dormir. E aqui vem a parte estranha, porque ele olha para mim e, tentando transmitir um pouco de seriedade aos seus movimentos, diz-me qualquer coisa como "Phaaa... Pedro, és o gajo mais normal que conheço. Até amanhã, paz." Abraça-me, e vai-se embora para o quarto dele onde a namorada o esperava para mais uma noite de um simpático descontrolo nas estruturas do prédio.



Esta história não tem moral. Mas o que é certo é que nunca me tinha visto por esta perspectiva. Sempre quis ser muita coisa que não sou, nos últimos tempos mais do que nunca, e acho que devia definitivamente confrontar-me com o facto de que sou normal. Se calhar é isso, sou o mais normal. Mas normal. E ser normal não é mau, é? Pelo menos não sou anormal, certo? Tenho de investigar melhor. Tem graça. Já vos disse que vou ser investigador? É verdade, e acho que vai ser uma boa experiência. Mas isso fica para amanhã. Ou depois, que não ando com humor para escrever aqui. Afinal de contas, está tudo a acabar. E a verdade é que eu dava tudo para que não acabasse. Haverá algum mal em não querer voltar? Acho que é normal.

#37

Nuremberga, 10 de Janeiro de 2008

Até agora não fui rapaz de comentar notícias nestes textos, mas como a alternativa é falar de drogas e sexo - o que ao momento, dada a assiduidade com que a minha família me lê, em nada se parece com uma solução - resolvi quebrar barreiras, saltar por cima de arbustos, ervas daninhas, lixo tóxico e afins, e tudo para dizer o seguinte. A partir do momento em que leio aqui que um maçarico-de-bico-direito está a por em causa a construção do novo aeroporto - que agora, ao que parece, já é na margem dos camelos - torna a minha tristeza por voltar ao nosso acarinhado país uma questão demasiado simples para ser confrontada com porquês e derivados. A sério. Maçarico de bico direito? É que estamos sempre a aprender. E a esquecer, em nome de uma boa saúde mental.



Foi algo de estranho o que aconteceu hoje. Estávamos a meio de uma aula, eu estava a expressar a minha opinião reservada sobre aquilo que vou fazer nos meses ou par de anos que se seguem. Tentava explicar a todos o que é muito simples de explicar. "Porque não sei, de facto, o que quero ser quando for grande". E não foi estranho o ter dito isto a um mar de desconhecidos, nem se quer à simpática professora que me ouvia. Inquietante foi a resposta dela, também para a turma toda ouvir, de que o que na ideia eu deveria fazer era tirar um Doutoramento dentro da minha área de estudos e vir para esta Universidade dar aulas. Que ela me gostava de ter aqui. Ela é, ou vai ser, a próxima vice-reitora. Sabem, sei como sou, se visse algum fundamento plausível neste desabafar de palavras nunca me daria ao trabalho de as pôr aqui. Nunca falo daquilo que sei que vai acontecer, só das possibilidades que deixo para trás. E esta há de ser uma delas porque, como lhe tentei explicar, o rapaz comunicativo e simpático que ela conhece não foi fadado para dar aulas. Aulas relacionadas com o meu curso, pelo menos. Bom, mas o estranho aqui é mesmo ter ouvido algo vindo de uma pessoa extremamente ponderada que me apanhou completamente de surpresa. Disse-o com uma sinceridade que me desarmou, deixou-se disponível para eu falar com ela sempre que quisesse, durante os próximos anos, caso achasse que era uma coisa em que devia apostar. Nunca o vou fazer, apesar de que acho que é neste ano de 2008 que devia apostar nos postais e telefonemas de natal para nunca perder o contacto de tanta gente boa que conheci. Não obstante, ouvir alguém confiar em nós de uma maneira tão livre como ela o fez foi algo que me marcou o dia. Escrevi-lhe isso na nota que tínhamos de dar como feedback à disciplina em questão. É uma pessoa que dá prazer ouvir falar, de entender como leva a vida de uma forma tão comprometida e, ainda assim, feliz. Nada vai mudar nas minhas convicções à cerca de quem sou e do que poderei fazer, mas penso que hoje, pela primeira vez, senti convicção fundamentada nas minhas capacidades, nas capacidades do murcão irresponsável e trapalhão que conheces. Foi bom, e fica aqui para me aumentar o ego e fomentar a auto-absorção que é este blog e que, regra-geral, são os meus pensamentos. Juro que agora me apetecia falar de sexo e drogas leves. Um pouco de álcool também. E porque não de café e música popular, para juntar tudo no mesmo saco. Para dizer a verdade, até já tenho o texto escrito e, digo-vos, a ideia dava um livro daqueles de qualidade pouco duvidosa. Mas acho que a minha mãe e o meu pai não iam encarar a conversa com grande facilidade e felicidade. Eles que me digam, se quiserem. Um abraço, e feliz ano novo.

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