#24

Nürnberg, 31 de Outubro de 2007

São quase dez da noite, sentado a um canto do átrio da minha faculdade, com uma vista privilegiada para o enorme parque onde ela repousa, escrevo este texto acompanhado por sons dispersos. Os sapatos do porteiro acompanham um chocalhar de chaves intermitente, por cada porta que deve ser fechada. A acompanhar a melodia, uma ténue melodia clássica embala os meus pensamentos, vinda directamente da sala onde a orquestra de estudantes da universidade de ciências aplicadas de Nuremberga ensaiam às quartas-feiras. Na enorme mesa que tenho só para mim começo a receber mensagens de todos a falarem-me de diferentes festas a acontecerem ao mesmo tempo. Afinal de contas, é Halloween. No entanto, hoje vou fugir ao espírito ERASMUS, vou ser eu próprio e dormir bem cedo. O motivo? Acordar às quatro da manhã tendo como destino Salzburgo, na Áustria. A minha ideia era ir sozinho, partir à descoberta, mas há cinco minutes atrás, em conversa com a Nadya, a minha Moscovita preferida, ganhei companhia para a viagem de quatro horas até ao Paraíso Alpino. Cheira-me a que vai ser em grande. Doe, a deer, a female deer. Ray, a drop of golden Sun. Me, a name I call myself. Far, a long long way to run!



Dou algumas voltas à cadeira. O porteiro ameaça correr-me daqui para fora sem eu acabar de escrever o texto de hoje, chutando-me para o meu apartamento em S. Peter. Mas eu estou aqui tão bem. Não que tenha ficado muito estudioso nestes últimos dois meses, cheguei aqui há coisa de uma hora, mas esta faculdade delicia-me. A vista para o enorme e mágico bosque do Whörder See, as condições que fazem lembrar uma FEUP desenhada com gosto, para que o aluno se sinta bem. As meninas bonitas que se sentam ao meu lado e puxam conversa sem eu dar sinal de vida e os rapazes que querem saber tudo sobre o que é isso de ser Português. Os Professores que me prendem com as suas histórias sobre vidas que não aspiro ter mas que gosto de conhecer. As minhas aulas de Treino Intercultural com a Mrs. Kisro-Völker que sentada na minha secretária do alto dos seus cinquenta e nove anos de idade, agitando alegremente os pés num baloiço infantil, nos confronta com as diferenças entre o Sorridente Português, o Resguardado Finlandês e a Pequenina Coreana. As senhoras da cantina que com um sorriso malandro me poupam dois euros que não tenho na conta final, que escolhem o pedaço de carne maior para me dar, que me mimam como eu gosto de mimar e ser mimado. Sinto-me acarinhado por este sítio de uma maneira que nunca tive na minha Faculdade. E é por isso que não me importo de passar alguns momentos por aqui, depois de uma tarde bem passada. Escrevi-te do meu apartamento. Li e ri como um perdido no primeiro andar do meu Starbucks, enquanto lá em baixo o Outono atirava pequenas folhas de encontra ao sobretudo do velho do violino. Convidei-me para três salsichas de Nuremberga num pequeno pão que com deleite vagarosamente traguei enquanto via as primeiras estrelas a surgiram no céu. Entrei na maior catedral da cidade pela primeira vez, chamado pelas enormes luzes nos vitrais, para ser recebido pelos belos cantos de um coro monumental.



Hoje o dia está a ser especial. Não sei se o é por ter ficado de noite tão cedo, por ter recebido uma carta que me deixou com o coração nas mãos, por os miúdos terem saído à rua nos seus abominavelmente simpáticos fatos de noite das bruxas, se por as abóboras estarem espalhadas pela cidade ou se por e simplesmente não conseguir explicar porque me sinto bem e esse sentimento me agradar. Sei que estou bem, como não me lembro de estar, e que gostava sinceramente que cada um de vocês sentisse isto dentro da vossa misteriosa arca de emoções. Espero ao menos que tenha passado um bocado do meu sorriso de puto reguila e satisfeito para esse lado que é tão vosso. Vemo-nos por aí.

#23

Dachau, 28 de Outubro de 2007

O domínio Nazi durou doze anos. Penso que toda gente sabe a história. Em mil novecentos e trinta e três, Hitler sobre ao poder, apontado pelo Presidente Hindenburg e com o apoio de uma nação sedenta por uma recuperação que se mostrava difícil depois da Primeira Guerra Mundial. Depois da morte de Hindenburg, Hitler rapidamente estabelece um regime totalitarista e desencadeia o extermínio de Comunistas, Socialistas, Judeus, Ciganos, Homossexuais, Emigrantes e tudo o mais que lhe causasse aversão. Sob o pretexto de reinserção social, logo em 1933 é criado o primeiro Campo de Concentração: Dachau. Com uma capacidade para seis mil pessoas, Dachau chegou a abrigar duzentas mil. Dados oficiais apontam para trinta mil mortes. Uma visita ao campo transforma estes números em cinzas, a que se juntam as emoções adversas que nos socam o estômago. É surpreendente a crueldade que temos dentro de nós.



Para chegar a Dachau tivemos de atravessar o nevoeiro da Baviera durante duas horas, quase até Munique. Dachau é uma vila muito pequenina, pacata, a fazer lembrar aquelas zonas urbanas perfeitas que vemos nos filmes, onde tudo parece ter sido pensado de forma a ser o mais irrepreensível possível. Ao pousar os olhos naquelas casas, naquelas ruas, nos pequenos jardins e nas crianças que aproveitavam o Domingo para brincarem cá fora, fico a pensar como pode um homem escolher tão pacata localidade para desenvolver uma máquina de matar. O condutor do autocarro 122 recebe-nos com um sorriso na cara, espera que a Magda acabe de fumar lá fora enquanto todos esperam no calor do interior do autocarro. Diz-nos que sim, que é este o autocarro para o Memorial, como agora é chamado. O caminho para o campo é feito a uma velocidade lenta, deixando-nos apreciar a beleza da vila. De cada vez que estou num sítio destes, não posso deixar de pensar quão sortudas são as pessoas que vivem num lugar assim, onde o tempo para desde que se nasce até que se morre, onde é realmente possível respirar. Mas esquece lá esses devaneios Pedro, o autocarro parou.



Dois passos e somos recebidos por uma enorme placa de mármore: «KZ-Gedenkstätte Dachau, the significance of this name will never be erased from German history. It stands for all concentration camps which the Nazis established in their territory». Bem-vindos pois então. Um grande arruamento com bastante vegetação, um riacho a passar e a rede – então electrificada – que deixa passar a vista de um imenso prédio branco, várias torres de vigia, enormes bunkers. À primeira vista, o campo parece acolhedor. O portão principal, hoje aberto, tem inscritas as palavras «Arbeit macht frei», algo simples para o meu repreensível alemão. O trabalho faz-te livre. Respiro fundo, passo o portão.



O memorial é isso mesmo. Um memorial. De algo que já passou. Já não se vêem SS a forçar crianças a um trabalho desumano, já não há novos e velhos a arrastarem-se pelos enormes pátios implorando de fome. Já não há ninguém nos dormitórios nem nas inexplicáveis celas. Das 32 casernas apenas duas subsistem, estando o espaço das outras demarcado para as futuras gerações. Os dois crematórios estão lá, a câmara de gás também. Das cinzas que deles restaram construiu-se o jardim mais bonito que alguma vez vi. E depois, há a merda do sentimento de raiva, de medo e de impotência que ganhamos ao percorrer o enorme espaço.



Do pátio enorme sabemos que era onde os detidos tinham de marchar e trabalhar arduamente, ser baleados ou obrigados a ficarem no mesmo sítio, de pé, durante dias. Das barracas vemos as condições miseráveis onde cento e vinte almas deviam dormir, em caixotes de cinquenta por cento e setenta centímetros, iguais a toda gente. Através de enumeras descrições, ficamos a saber que as pessoas eram mortas por ter a cama mal feita, por entrarem de sapatos, por não manterem a ordem no sítio que lhes era destinado. Da prisão, vemos as condições horríveis onde presos políticos, padres e outros mais eram mantidos, quer em celas banais, em postes onde eram atados pelas mãos ou em celas onde os prisioneiros, com setenta centímetros quadrados de chão, eram obrigados a permanecer de pé. Vemos as enfermarias onde se realizavam as horríveis experiências médicas.



E o cheiro. Esse mal que não desaparece e que nos atinge como mil setas, o horrível cheiro da morte que cinquenta anos depois insiste em ficar. Cá fora, explicam-nos onde eram baleados os prisioneiros comunistas, o caminho que efectuavam em direcção à morte, indicam-nos para que vedações corriam os desgraçados que queriam pôr fim à sua própria vida.



E as fotos. Fotos que nunca mais acabam, fotos de pilhas com dezenas de cadáveres feitos de pele e osso, fotos de prisioneiros a tentar escapar, fotos de velhos infelizes que trabalharam até ao último suspiro, fotografias de rapazes esfomeados, cães obesos e guardas sorridentes, fotografias de condenados suspensos pelas mãos, de condenados a serem baleados, de pobres almas a serem chicoteadas. E claro, os postes onde os primeiros foram suspensos, buracos das balas onde os segundos padeceram e os objectos de tortura com que os últimos deram os seus últimos gritos de misericórdia.



Mas não acaba, porque ao fundo da bela avenida por onde nasceram as trinta e duas barracas existe um jardim. Um jardim com duas casas admiravelmente belas e pacíficas. Uma porta. Dezenas de chaminés. O cheiro volta. Há a sala de desinfecção. Há a sala de espera. Há a indicação de sala de banhos e a explicação de por onde saía água para enganar os mais desconfiados e por onde saía o gás mortal. Há muitos fornos crematórios, que foram construídos porque os dois primeiros não davam conta do recado, mas não é isso que impressiona.



Há a câmara de gás. E apesar de este ter sido o primeiro campo onde foi construída uma câmara de gás mas esta não ter sido utilizada para mortes em massa, houve gente que ali morreu. E tocar naquelas paredes e naquele chão como eu toquei dá a volta ao nosso fraco estômago. Garantido. E depois há um passeio pelo jardim que falei, com as suas flores e árvores, ladeados por placas que explicam que ali repousam inquietos milhares de judeus. Há um pequeno recanto, um muro e uma grande trepadeira. Ali jazem outros tantos. É horrível.



Terminamos a visita pelo Museu que explica tudo aquilo que nós não queremos saber, que mostra tudo o que não queremos ver. Há um pequeno filme que deixa qualquer um absorto de loucura e raiva. Saímos do campo sem trocarmos palavra. Duas horas depois chegávamos a Nuremberga, entravamos nas nossas casas e as únicas palavras que tinham sido trocadas viajaram em forma de embaraçados suspiros. Foram Homens que fizeram isto. Homens como tu e como eu, que olhando de frente um pobre rapaz de vinte e três anos lhe dava um tiro por este pedir um pouco mais de comida. Foram Homens, porra. Foram Homens.

#22

Nürnberg, 27 de Outubro de 2007

É Sábado de manhã. A minha rua ganha proporções de cidade fantasma, a maioria dos estudantes que confere à rua alguma vida durante a semana foi matar saudades da comida da Mãe ou das alegres histórias do Pai. Sobro eu e os outros como eu. Espreguiço-me, bocejo, mudo de posição na cadeira enquanto dou um trago no cada vez mais suportável café instantâneo. Escolho a voz encantada de Lhasa para acordar, dou uma vista de olhos à caixa de correio com poucas novidades para contar, decido abrir o meu cantinho dos escritos para vos deixar estas palavras, falar-vos dos arranha-céus de Frankfurt, da pequenina Bamberg, da alucinante loucura no Oktoberfest, da incrível beleza de Rothenburg e, claro, da inesperada neve em Munique. Histórias dos meus seis fins-de-semana já passados por terras nesta República Federal Alemã que lentamente me prende com o seu charme frugal.



Viajar de comboio sozinho na Alemanha é um assalto à carteira. Vai daí, e como alguém um dia disse que a união faz a força, juntamos todos os fins-de-semana dez ou quinze seres sem nada para fazer na vida e compramos dois ou três dos maravilhosos Bayern-Tickets (na Baviera) ou Schönes-Wochenende-Tickets (para toda a Alemanha) que assim nos permitem viajar a cinco euros a cabeça, durante todo o dia e em qualquer comboio regional, ao contrário dos normais quarenta, cinquenta ou sessenta euros de um comboio ICE por aqui. Há coisas fantásticas, não há? Pois bem, Frankfurt foi a primeira paragem. No dia quinze de Setembro, acabado de chegar do Interrail, meto-me no comboio com o resto dos ERASMUS em direcção ao centro financeiro Alemão. Ao fim de três horas de viagem num regional que bate por grande margem os nossos inter-cidades, começo a vislumbrar no horizonte uma mancha que para mim - Português habituado à cascata de telhados da ribeira ou às casas amorfas da Rua do Zaire – causa um impacto fenomenal. Prédios que tocam o céu. Certamente levado ao colo pela cultura americana, sou susceptível a prédios grandes, conseguindo mira-los durante eternidades sem parar de me questionar como será construir uma coisa daquelas. Pois bem, em Frankfurt há muitos destes mimos para mim.



Chegamos à estação. É dia de futebol, os adeptos dirigem-se no meio dos seus cachecóis e caras pintadas para o estádio, munidos de estandartes e muita cerveja. Como pessoa curiosa que sou, peço um copo a um dos adeptos que transporta um mini-barril, com a desculpa de querer experimentar mais um tipo de cerveja alemã. Embriagado pela hora – eram ainda 10 da manhã – o simpático alemão lá me enche um copo, vai à sua vida, e eu sigo o meu passeio até ao Salão Internacional de Frankfurt, o paraíso automóvel na terra que duas vezes por ano traz um milhão de visitantes à cidade.



O centro de exposições de Frankfurt é impressionante, colossal e, infelizmente, atulhado de seres, como eu, ávidos por ver os carros que jamais irão ter. São dez pavilhões, cada um com espaço para muitas Exponor’s ou FIL’s lá dentro, preenchidos para nos destruir o coração. Porsches e Fiats, Aston Martins e Renaults, Lamborghinis e Pegeouts, Ferraris e Skodas, BMWs e VWs, há para todos os gostos. Foi uma pena estar tanta gente enfiada lá dentro, pois não conseguimos ver metade dos carros que queríamos. Chegou pelo menos para ficar espantado com uma apresentação da Porsche e para fazer festinhas a um Dodge Viper. À cidade propriamente dita, não há muitos elogios a fazer. O centro histórico resume-se a uma pequena praça, mas tudo o resto são avenidas e ruas banais, com espaço para os arranha-céus das sedes do Banco Central Europeu ou do Deutsche Bank. Depois de uma tarde a cirandar, depois de um almoço à base de comida coreana e um café no Starbucks, rumamos para casa, totalmente relaxados com a nossa primeira saída de Nuremberga.



No fim-de-semana seguinte veio Bamberg. Uma pequenina cidade da Baviera que faz lembrar Nuremberga, com duas grandes catedrais no alto de uma colina, e muitas pequenas casas timbradas que assentam com desconfiança num pequeno rio, todas elas com um pequeno jardim que mergulha rio dentro. Nesta cidade experimentei pela primeira vez dois tipos de cerveja completamente diferentes. A primeira era uma Rauchbier - cerveja fumada - que, inexplicavelmente sabia a presunto. Boa para experimentar, mas só mesmo para isso. A segunda era uma cerveja sem gás, com aspecto de chá e um sabor delicioso. A empregada que serviu esta segunda cerveja fazia com certeza parte da experiência do cliente, adorei. Mas cerveja, cerveja, veio depois.



Os dois sábados mais alucinantes da minha vida têm um nome em comum: Oktoberfest. Seis milhões de visitantes bebem, por ano, sete milhões de litros de cerveja durante os dezassete dias do festival. Quarenta e dois hectares de espaço são preenchidos por catorze tendas gigantescas das cervejarias mais famosas da Alemanha, pequenas barracas com tudo e mais alguma coisa para vender, carrosséis, montanhas-russas e coisas cujo nome eu nunca vou saber e, claro, muita, mas mesmo muita, muita gente.



Deslocarmo-nos de Nuremberga para Munique a fim de termos lugares sentados dentro de uma das tendas principais significa acordar às quatro e meia da manhã, o que vai dar ao mesmo que dizer «não dormir». Pequeno-almoço em casa, café na estação, cerveja no comboio para aquecer para a festa. São sete da manhã e já estamos em Munique. O sol ainda não levantou, pelas grandes alamedas do recinto homens incansáveis recolhem o lixo do dia anterior, enormes camiões chicoteiam o pavimento com jactos de água, fornecedores deixam pão desprotegido à porta das barraquinhas, a pedir que o Português esfomeado surripie um sem ninguém ver. Somos os primeiros a abancar à porta da tenda, de certo não vamos ser os primeiros a entrar, tal é a confusão. As portas abrem às nove e por essa hora a fila atrás de nós é descomunal. Abriram. Correria, confusão, empurrões, gritos, agarra esta mesa, não esta, agarra uma qualquer porra, não importa, sentem-se! Trinca para um lado, chega para lá pelo outro, rabo no banco corrido, ufa, venham então vinte litros de cerveja por favor, e tu, menina bonita, podes-me deixar um Bretzel aqui na minha mesa? Deus te pague – que eu sei quão religiosas são as pessoas por estes lados.



Das nove da manhã até às três da tarde não fazemos outra coisa se não rir, conhecer multidões, abraçar e beijar austríacas, brasileiras, americanas, australianas e o diabo a sete, é o Oktoberfest, não interessa! A simpática Heidi de Innsbruk dá-me a sua caneca de vinho. Custou-lhe trinta euros mas ela já não quer mais. O rapaz de Viena partilha comigo a sua Weisswurst. O italiano empresta-me o chapéu e ó diabo, que a Americana dá beijos bons. Com o nosso grupo é o mesmo que sempre, berra-se em espanhol que nos viemos emborrachar e que o resultado não importa. Perco uma aposta, sou obrigado a beber um litro de golada. Por favor, tirem-me daqui. São três da tarde e que idiota que sou que não pedi o número às Austríacas. Nem uma foto lhe tirei, besta, besta. Mas o que lá vai lá vai, agora estamos cá fora e é tempo de montanha-russa, carrossel hiperactivo, é tempo de me perder e fazer mais amigos cá fora, dá-me o teu numero, toma o teu, como é que era mesmo o teu nome, tens um vestido muito giro, vemo-nos um dia qualquer por acaso, talvez, hey, Cristiano Ronaldo – eu?, uma foto, um abraço, mais outra, e outra, eram à volta de quinhentas mil pessoas a deambular de baixo de um calor incrível, são duzentas e sessenta fotos de histórias para contar. Finalmente encontro-os, dirigimo-nos para a estação, arranjamos um espacinho no chão do comboio, passa-nos pela cabeça que viemos duas vezes a Munique e não vimos nada da cidade, fechamos os olhos e adormecemos. Mãe, Pai, eu estou bem.



Passada a experiência acelerada, relaxamos em Rothenburg por um dia. E que cidade encantadora esta. Rothenburg ob der Tauber, situada na chamada Estrada Romântica, foi a vila que inspirou as ruas de Pinóquio e que, já agora, me inspirou a mim também, pois então, que não sou menos que o Walt Disney.



A tarde passada aqui foi maravilhosa, culminando com a minha fugaz visita a uma loja de antiguidades de onde saí com menos dez euros e com as mãos segurando uma bela guitarra alaranjada com um requintado som a desenrasca. Ficam ainda memórias de tantas e tantas casas a vender brinquedos, típicos desta região, peluches gigantes, flores de madeira, gatos de latão, chapéus de veludo, fantasias que não se compram mas que se cheiram ao virar de cada estreita calçada. As pequenas serpentinas de ruas, os cavalos mais bonitos do mundo a puxar elegantes charretes, casas e casas que parecem ser feitas de chocolate, casas e casas a vender chocolate, um vale de um verde extraordinário a perder de vista, uma gigante muralha a proteger a cidade, certamente não de algo que a possa atacar mas sim para não deixar que toda esta beleza e magia escapem à vila mais bonita que alguma vez visitei. Se vierem cá, quero-vos lá levar.



Por último, falta-me falar do regresso a Munique. O boletim meteorológico, que me lembra Serenela Andrade, prometia neve e esta não falhou. Sim, meninos e meninas, estávamos a meio de Outubro e já nevava. A cidade não estava coberta de branco, nem nada que se pareça, ficando essa tarefa reservada para os capots dos carros, mas o que é certo é que eu vi, com os meus olhinhos de menino encantado, cair estrelinhas de neve. Tínhamos ido a Munique porque as Polacas queriam companhia para irem votar. Aparentemente a Polónia era até aquele dia liderada por um Presidente da República e um Primeiro-ministro gémeos, que não agradavam a ninguém. Pois bem, a vontade era tal que as meninas lá se deslocaram a Munique de propósito para se fazerem Mulheres (!) e nós fomos atrelados. E sim, finalmente vi Munique!



Não vi tudo, porque o frio era muito e a Haufbrauhaus era mesmo ali ao virar da esquina, com os seus canecos de 1L prontos para serem levados pela minha pessoa a fim de me servirem como chávena de chá. Não obstante, a cidade é linda de morrer. Grandes avenidas, num estilo que me lembra uma mistura de Alguma Coisa com Budapeste. Uma sobriedade incrível mas extraordinária, onde a imponente arquitectura se mistura com os fantásticos jardins do palácio, onde as praças históricas dão lugar ao maior parque citadino da Europa. E depois a neve, porque nevou, e eu corri para ela como uma criança corre para ela também. Porque é branca e faz desenhos, e não chateia ninguém. Por agora, pelo menos. Tenho de voltar a Munique, a cidade é grande de mais para se ver numa tarde. Para já, deixo-me estar apaixonado por ela.



Já não é Sábado de manhã. São sete da tarde, passei o dia mergulhado no meu belo One Flew Over the Cukoo’s Nest, dando umas escapadelas aqui para tentar escrever o que me vinha à cabeça dos fins-de-semana passados. Ficam muitas histórias para contar, como o meu assalto a uma fonte em Frankfurt, a simpática velhinha do comboio que me obrigou a falar Alemão durante a viagem toda (era bom, era), as simpáticas empregadas que me deixam apaixonado de cada vez que vou a algum lado, o caneco que se partiu nos carrinhos de choque, a invasão de japonesas que não se foi embora enquanto não me deu muitos beijinhos e fotografias ou os simpáticos italianos que amam Coimbra. No entanto não há tempo para tudo, fica aqui por isso apenas um cheirinho.



Amanhã seguimos para Dachau, um dos mais importantes campos de concentração da era Nazi. Tenho sentimentos contraditórios a visitar o lugar. Custa-me que façam do local um destino turístico, chateia-me que tenha este bichinho que me chama para ser um desses turistas que cria o destino. Até agora, sempre que perguntei como foi a visita às pessoas que conheço que lá foram recebo sempre o mesmo. Um longo suspiro. Depois, virão Berlim, Dresden, quem sabe Colónia e se for barato, Amesterdão, para uma visita relâmpago a Delft e Gent. Para o Natal, sonho com Cracóvia, Varsóvia, Vilnus, Riga e Tallin. Será que consigo?


(ah. este texto tem o apoio do sindicato das palavras. vai com toda a certeza empacotando com muitos erros de ortografia, estrangeirismos mal escritos, incertezas e repetições de palavras até à exaustão. não gosto tanto, mas vamos lá experimentar. só por uma vez, está bem? *publish-post*)

#21

Nürnberg, 24 de Outubro de 2007

Acordo bem cedo num dia sem aulas. Frio, muito frio. Hoje também não vou fazer a barba, está frio. Dou uma vista de olhos pelos jornais portugueses, tento entender os jornais alemães e perco-me pelos jornais que são vossos. Visto-me, calço as minhas luvas, enrolo-me no cachecol, enfio o enorme casaco acabado de comprar, iPod no bolso interior, câmara no esquerdo, telemóvel no direito. São dez da manhã. Hora de me fazer à estrada.



Acreditem-se, zero graus são de mais para um Português. No entanto, quatro ou cinco passos na Sophienstrasse e já não tenho frio. O casaco e os Massive Attack fazem-me sentir ainda dentro da cama, agarrado à almofada a sonhar com coisas como o Puto acabado de nascer e a falar inglês, alemão e espanhol, ou um cavalo mexicano que tem fome de pataniscas nas margens do Rio Douro. Estranho. A minha rua é deserta. Tem carros estacionados, a Mrs. Kaiser na janela em frente a berrar algo do seu terceiro andar na romântica língua alemã, por a festa no meu apartamento não a deixar dormir em condições. As outras ruas até à estação não têm muito mais.



Árvores, prédios sobriamente construídos, uma ou outra estudante Alemã que sorri para dentro das minhas vestes de português enregelado. Senhores cordiais que nos acenam com a cabeça de cada vez que passam por nós. Um outro amigo que começou o dia mais cedo e volta da Faculdade. Há comboios, túneis, mais uns prédios, a entrada para o enorme parque, corvos e ratinhos. Sim, Mickeys e Minies, grandes e pequenos, há para todos os gostos. Por dia, vejo dois ou três, sempre que passo por zonas com alguma vegetação. É formidável, e, por incrível que pareça, estou a desenvolver uma relação de amor-amor pelos ratinhos. De cada vez que um se atravessa no meio da rua e me mira, desconfiado pelo meu esgar de surpresa. «Será que me vais comer, senhor?»



Continuo o meu passeio enfiado nos lençóis do meu casaco. Dura o dia inteiro. No crepúsculo, deparo-me com o fantástico mercado de peixe. Vai estar cá até Domingo, e até Domingo não tenciono comer outra coisa a não ser Sandes de Peixe-Rosa ou filetes de Carpa. Finalmente, peixe! A acompanhar, um delicioso Gluhwein, vinho quente, como chá, com especiarias e um aroma a frutos dos bosques, que aquece o coração de todos aqueles que comigo partilham o enorme banco, em busca de convívio e algo quente nas mãos. Ao final da tarde, começo o caminho para casa, quando me deparo com a Magda, polaca. Mais uma festa, pois então.



Passei um mês a olhar esta cidade de lado, sem entender alguns dos trejeitos das pessoas, sem conseguir beber da cor tristonha dos edifícios ou a confusão que se gera à volta da Altstadt. Hoje, finalmente, fui completamente absorvido pela cidade. Percorrer os cantos de Nuremberga com a máquina fotográfica entre as minhas luvas sem dedos, tactear e tocar tudo por onde passava, sorrir às pessoas e receber repetidos sorrisos de volta, fez-me ficar apaixonado pelo sítio que escolhi. Amanhã prometo contar-vos sobre o fim-de-semana que deveria ter sido em Pilsen, na República Checa, e acabou por ser em Munique. Vemo-nos lá.

#20

Nürnberg, 18 de Outubro de 2007

Tenho esta coisa muito Portuguesa de adiar tudo aquilo que me causa comichão. É um final de tarde em que tento resumir as minhas competências a uma folha de papel, para que alguém me escolha para um estágio na sua empresa. Digo que tento porque de cada vez que abro o documento as minhas mãos tendem em fugir, seja para tocar a Space Oddity na guitarra ou para fazer rolar pelas colunas um qualquer álbum dos Green Day, perdido no meio do apetitoso chocolate quente que é o minha biblioteca do iTunes. Olá, o meu nome é Pedro Pinto, sou teimoso e persistente, umas vezes nervoso e outras tantas o mais tranquilo e preguiçoso do mundo, tenho tanto de perspicaz como de idiota, gosto de vestir fato e gravata ao mesmo tempo que deixo o meu cabelo atacar furtivamente o ar à sua volta, chateia-me fazer a barba todos os dias e chateia-me quando os meus flatmates se esquecem que eu não sou a mãezinha deles. Mas mais que tudo, gosto de falar com pessoas, gosto de as fazer sentir bem, irrita-me quando sou inconveniente – o que sou amiúde – ou arrogante, consigo correr quilómetros sem me cansar e as únicas situações em que gosto de me sentar é para ler as notícias, conversar, almoçar e jantar. Gosto de fotografar, de ler, de escrever, de colar – sabes, como quando tudo o que vês à frente é uma grande névoa, mas a mais intrigante névoa que alguma vez viste – e gosto especialmente de cozinhar, comer e – pasma-te - de lavar a loiça. Feito isto, tens uma vaga para mim como programador de macacadas para computadores, páginas web ou outra coisa qualquer que me dê os trinta créditos finais de que preciso para acabar este curso – ui, ui, Mestrado! - da treta? Não gosto de mentir. Detesto mentir. Sou mau a mentir. Vai daí, custa-me escrever quão fascinantes são as minhas capacidades a programar em Java, C, ou RaiQueOParta. Dói-me dizer como estou interessando em trabalhar nesta empresa fascinante, em como sou um atento seguidor do mercado das novas tecnologias, como quero aprender tudo sobre algoritmos, complexidade e arquitectura que esta empresa maravilhosa me pode ensinar. Não me compreendam mal, o ordenado de um Engenheiro Informático é, penso, adorável. As condições de trabalho são óptimas para garantir uma vida livre de cancro de pele. E a destreza que se ganha a tocar piano – se imaginarmos que de A a Ç temos as teclas brancas e de Q a P os sustenidos – também é impressionante. Mas não é para mim. E é por isso que digo aqui em directo, Papai, Mamãe, quero ir para aqui. Só preciso de o bilhete de avião e da módica quantia de vinte e oito mil dólares que os senhores do The Institute of Culinary Education pedem para fazerem de mim um espantoso auxiliar de cozinha, com perspectivas de ser a próxima Maria de Lourdes Modesto. Que me dizem?



Entenda-se então que é graças a estas belas circunstâncias que, neste momento, os tendões das minhas pernas forçam os pedais da bicicleta a fazerem circunferências perfeitas – daquelas que eu nunca consegui fazer com um lápis ou caneta – enquanto o relógio agarra os vinte minutos que eu lhe pedi. Estou no minúsculo ginásio da minha residência (que saudades do meu ginásio aí em casa!) e tento abstrair-me que tenho um currículo para escrever. A Anne faz uns estranhos aquecimentos, aparecem o Dinesh, o Álvaro, mais tarde vai aparecer o Carlos. Esqueçam a barriga de cerveja, somos uns atletas. Peso para cá, peso para lá, dez, vinte, cinquenta, cem abdominais que em nada ajudam a que ao pêlo se junte uma barriga firme, mais umas pedaladas e está feito. A saída do ginásio, já de noite, é um pequeno sonho todos os dias. A minha residência tem um adorável jardim no seu interior, e o ar gélido ataca-me com um estalo que retribuo com um enorme sorriso, enquanto toco nas folhas caídas das árvores e espreito para dentro das janelas iluminadas de laranja de tantos estudantes que partilham S. Peter comigo. Músculos relaxados, corpo suado, passo pelo jardim aos saltos, como uma criança que acabou de receber um doce, contente por um final de tarde igual a tantos outros, daqueles que eu não me importava de repetir todos os dias. Tomo banho, preparo o jantar com que me delicio, dou uma vista de olhos pelos blogs, quando me lembro que ainda tenho o currículo para escrever. Atiro a cabeça com força em direcção aos calcanhares, miro o tecto e pergunto-me porque é que as coisas não são todas fáceis como fechar os olhos e adormecer. Abro o documento uma vez mais, agito os dedos no ar e ponho-me ao trabalho. Três segundos depois, batem-me à janela. Já vos disse como me sabe bem ser ERASMUS? Não sei quem é, mas não precisam de repetir para entender o significado. Abro a porta, aceito a garrafa de vinho, pego em dois copos ao mesmo tempo que ponho alguma música e esqueço a página completamente branca que tenho no monitor. A noite começou. Tenho esta coisa muito Portuguesa de adiar tudo aquilo que me causa comichão. Respeitemos esta tão importante herança cultural, pois então! Até amanhã (:

#19

Nürnberg, 16 de Outubro de 2007

Seis copos e duas garrafas de vinho partilham o destino final, vazios em cima de uma mesa onde as velas queimam as últimas gotas de um pequeno lago de cera, acanhadas lanternas que lançam para nós o calor necessário de um final de noite perfeito. São duas e meia da manhã. Raios, a noite de sono vai ser curta. As primeiras notas de Breath Me embalam cada um de nós em direcção à cama, depois de um serão recheado de burritos australianos, música boa, música má, karaoke, guitarra, vozes desafinadas, alguma uva que leva a sorrisos ternos de uma intimidade que parece existir há anos. A voz da Sia atinge-me com a força de mil crianças, atingindo contornos épicos de um amor por uma música que me deixa de rastos, gritando por ajuda do fundo da minha alegria inabalável. Sim, tens razão, que noite deliciosa esta que tivemos. Be my friend. Hold me. Wrap me up. Unfold me.



Ser um grão de areia numa pequena praia onde dão à costa diariamente novas pessoas na mesma posição em que te encontras tem coisas destas. Vais ao ginásio com a Madamme de França, onde encontras os Tios de Espanha. Suada toda a água que tinhas no corpo, tomas um banho rápido entre dois tragos de um Cuba Livre que os estranhos Alemães te oferecem. Vestes-te e vais ajudar o cozinheiro desta noite, Ozy, ou Australiano, a preparar um prato tipicamente Mexicano. Esperas pela doce Sul Coreana (neo yepa!), enfartas-te com as pequenas tortilhas recheados com muita carne, vegetais e um molho exageradamente picante. Deixas o apartamento dele e voltas ao teu, levas toda gente atrás. Trazes três copos, abres uma garrafa, chega mais um, trazes outro copo, é pá, mais dois?, vão vocês buscar os copos, sabem onde estão, podes mudar a música?, obrigado, Prost! É tarde, levantamo-nos todos cedo, estamos a adorar as aulas, sem excepção, amanhã vamos acordar ainda mais cedo, se calhar devíamos ir indo, querem ver uma coisa gira?, ele tem karaoke no computador!, olha o vinho acabou-se, toca guitarra primeiro, ó não, lá vem a Mrs. Kramer do seu terceiro andar do prédio da frente dizer que estamos a fazer muito barulho, ai sim?, pedimos desculpa, ok, karaoke, não era?, vamos cantar Aqua, Backstreet Boys, Aretha Franklin, sinto-me em casa, mas não sinto, mas sinto. É tarde, deviamos dormir, vamos dormir?, mais uma, mais uma, outra, deviamos mesmo ir dormir, mais uma e uma última, ai, esta não presta, agora sim, a última, risos, foi bom. Vamos dormir? Um sorriso ternurento responde, definitivamente, até amanhã.



Despertei às sete da manhã. Do fundo da minha sonolência ou do meu sonho – o que terá sido hoje? Todos os dias tenho um sonho melhor que o outro. Sim, extraordinário. – poderei ficar a dormir as horas que me roubei, mas o Prof. Thomson é curioso de mais para me esquivar às suas lições. Levantei-me às dez para as oito, à hora certa estava sentado, esguedelhado, sonolento, desalinhado, café numa mão e uma barra de chocolate na outra. Bom dia Admirável Vida Nova, o que tens tu hoje para me dar? I am small. And needy. Warm me up. And breath me.

#18

Nürnberg, 14 de Outubro de 2007

Acordar bem cedo, por volta das sete e meia da manhã, com as amigas do meu vizinho chinês a tocarem a sétima sinfonia de Beethoven com a minha áspera campainha. Voltar a adormecer e acordar mais tarde, com vontade de conhecer mais um pouquinho do meu pequeno novo mundo. Erguer-me, pôr o novo dos Radiohead a tocar, espreguiçar-me convenientemente e saltar para o chuveiro. Ainda não está muito bem lavado, branquinho e apetecível, mas vai ter de servir. Banho tomado, tiro com os olhos ainda meios fechados as primeiras peças de roupa que os meus dedos farejam. Subo a persiana, num ritual que lembra o içar da bandeira, graças ao fantástico cortinado patriótico que improvisei. Tomo um horrível e revigorante café instantâneo – será que uma colher de sopa por chávena me fará um mal desconhecido? – digo bom dia ao Chinês que só fala Alemão, pego nas chaves, carteira, telemóvel, máquina fotográfica, dicionário de bolso e o meu «One Flew Over The Cuckoo’s Nest» escrito num inglês por vezes labiríntico, atiro com tudo para dentro da minha mala e ala que se faz tarde para a Rua, que um ERASMUS não se quer enfiado em casa.



Lentamente, absorvendo cada pedaço de madeira, betão, perfume ou monóxido de carbono que esta cidade tem para me dar, percorro o caminho de sempre até ao centro da cidade. Perco-me em ruas ainda desconhecidas, descubro a Red Light District ou o pequeno mercado de Antiguidades, sou parado por duas belas alemãs que procuram um saca-rolhas mas que me encontraram a mim. É cedo, mas já estão num mundo de fadas, duendes e castelos encantados, acompanhadas por cinco garrafas de diferentes tipos de cerveja, Prosecco, pãezinhos e bolachas. Encontraram o príncipe encantado, e esta ein? Perdemo-nos na conversa junto a uma das mágicas ilhas deste Pegnitz que tanto me apaixona, dizem-me que querem ir a Portugal, que não gostam dos Alemães, que gostam de mim, que têm os namorados à espera, ó não, agora eles estão a ver-te, vão ficar com ciúmes, não faz mal eu corro mais depressa, risos, não queres vir connosco, não, divirtam-se, merda que a máquina esta sem bateria, bom tenham juízo, quatro beijos, está bem mais outro, adeus.



Sento-me no Starbucks a digerir a estranha sequência de acontecimentos de hoje, todos os dias algo diferente. Pego no meio livro, sorvo a amargura do café, tento entender o que as três alemãs ao meu lado dizem, sorrio-lhes e elas, filhas da sua terra, coram e sorriem de volta, comentam qualquer coisa codificada em germânico e continuam com as suas vidas. Feita a leitura, a tentação e o deleite, subo a Konigstraße por entre as grandes tendas listadas como os irmãos White, onde os vendedores exibem com orgulho uma quantidade imensa de fruta, queijos, enchidos e até uma mostra considerável de azeitonas e produtos mediterrânicos.



Volto para casa para vos escrever, dar uma vista de olhos pelos jornais Portugueses, tentar falar com quem aparece na minha pequena janela com vista para Casa, cozinhar algo saboroso com o tão português casamento de alho e azeite, degustar o pitéu antes de convidar alguém novo para um copo de vinho e dois dedos de conversa, pôr algum perfume porque as pessoas se querem cheirosas, apagar as grandes velas que me iluminam o espírito noctívago e preparar-me para mais uma noite de borga hiperactiva.



Desde que cheguei, devo ter passado quatro ou cinco noites em casa. Todos os dias algo diferente, alguém novo para conhecer, uma nova forma de fazer rir, cantar por todos os poros que for possível. Os dias passam assim, rápidos como setas que tento parar com as trémulas mãos. Não quero que isto acabe. Pára seta, pára!

#17

Nürnberg, 12 de Outubro de 2007

Vivo em Nuremberga há trinta e três dias. Confortavelmente sentado num quarto onde passo poucas horas diariamente, escrevo acompanhado por meia centena de fotografias dos últimos sete anos espalhadas pelas paredes, todas a preto-e-branco, para serem mais fiéis à minha memória que rejeita as cores. Fora das paredes, alguns livros em português, inglês e alemão, duas belas garrafas do vinho tinto que o LIDL tinha em promoção esta semana, um copo, porque o vinho não é só decoração, algumas velas, as minhas colunas – e como foi boa a sensação de ouvir musica por elas, depois de um mês de auscultadores a atacarem os meus ouvidos - e uma guitarra comprada num antiquário de Rothenburg por dez euros. Hoje, tudo é mais fácil. Nem sempre foi assim.



Estava habituado à perfeição de Praga quando aqui cheguei a 10 de Setembro. Vinha de uma das mais belas cidades da Europa, onde tudo foi construído para deslumbrar. Ao sair da estação de Nuremberga, os meus olhos foram traídos pela confusão do transito dos automóveis, bicicletas, eléctrico, prédios construídos com a precisão alemã e muita, mesmo muita chuva. O rapaz que me foi buscar à estação não chegava, cinco, dez, vinte, quarenta minutos, chegou, parecia apressado, levou-me de carro até à faculdade, mais chuva, pressa, um estranho elevador, algumas portas fechadas, mais transito, mais chuva, aqui tens a residência, adeus que me tenho de ir embora.



Sozinho no 12 da Sophienstraße, vi o pacato quarto que me tinham reservado, de paredes brancas, carpete verde, vista própria de um rés-do-chão virado para uma rua muito pouco movimentada. Olhei as portas fechadas dos meus quatro flatmates, as três casas de banho imundas, a pocilga em que se encontrava a cozinha. Gosto de sítios limpos, asseados, onde tenha algum prazer estar. Se falarmos de cozinhas e casas de banho, mais ainda. Estou certo de que compreendem porquê. O meu espanto por ver estas quatro divisões completamente caóticas, porcas, foi um choque. Alguém me tinha tirado o tapete de baixo dos pés, deixando-me estatelado no chão imundo de uma cozinha que não conhecia a palavra esfregona, esfregão, lixívia ou detergente há, no mínimo, um ano. Sim, era tão mau assim. Pensei «Isto não pode ser verdade». Decidido, rumei a pé à estação, decidido a mudar o meu estado de espírito relativamente à cidade que me iria receber durante seis meses. A ideia não podia ter sido melhor.



Descobri que a pacata zona onde habito, a cinco minutos da Faculdade e dez do centro, é recheada de casas com não mais do que três ou quatro andares, pequenos parques, pessoas sorridentes. Descortinei o enorme centro comercial sobre o qual a estação de comboios assenta, a passagem subterrânea por baixo do trânsito da mais confusa circular de Nuremberga e, inevitavelmente, a entrada no paraíso. Se o exterior da enorme Altstad (alemão para Cidade Antiga) não impressionar ninguém com os belos parques, a calma atmosfera e os pequenos lojistas de todos os tipos, então a entrada nas muralhas da cidade irão fazer justiça à minha escolha. A cidade envolve-nos, dá-nos a beber dos seus tempos medievais, fervilha de magia. Nitidamente mais contente, voltei a casa, decidido a varrer da minha cabeça o início mais complicado.



Demorei dois dias a limpar a cozinha de uma ponta à outra. Mais um dia para uma das casas de banho. Alguns dias para pôr o quarto à minha maneira, bandeira de Portugal à janela, vocês nas paredes, Lindorfo ali, candeeiro aqui, uma colcha nova, obrigado mãe. Tenho um quarto onde me sinto bem, uma cozinha onde gosto de cozinhar, um quarto de banho onde passo meia hora depois de cada sono bem dormido, corrida pelo parque ou noite intensa de festa, sorrisos e internacionalizações de beijinhos. Não consigo descrever este sentimento de viver sozinho, tão longe de casa. É forte, por vezes atira-nos contra uma parede de espinhos, mas é a reunião de sensações mais extraordinárias que já senti. Sabe bem ser ERASMUS.

#16

Nürnberg, 10 de Outubro de 2007

Desde há muito que desejava ardentemente viver sozinho, não por não ter liberdade no Porto, porque a tinha, mas sim porque sou adepto da mudança regular. O meu organismo não foi feito para viver mais do que um curto período de tempo da mesma maneira, preciso de conhecer pessoas novas ao mesmo tempo que descubro melhor as que conheço há mais tempo, tenho de me perder por ruas que me provocam um nervoso miudinho por me estar prestes a perder, sinto necessidade de ser ignorante perante tudo, quero sempre mais. Por isso, estudar seis meses fora de casa não me podia parecer melhor. Viver seis meses no meio de uma cultura que em tudo é diferente das minhas convicções e costumes, com uma língua que me é imperceptível, com olhares que me fazem tremer de dúvida sobre se o que estou a fazer é ou não bem aceite, é uma aventura que não podia deixar passar. Prometi a mim mesmo aproveitar este sonho ao máximo, não deixando passar nenhuma oportunidade, para o bem e para o mal. Não ando a cometer loucuras, não dou beijos a todas as senhoras de idade que passam por mim, não meto conversa com casais de respeito nos comboios, perguntando-lhes informações sobre as suas medidas contraceptivas. Porto-me bem. Comporto-me. E desfruto desta utopia ao máximo.



Um castelo medieval guarda, da imponência da sua colina, um vasto mar de telhados docemente inclinados, suportados por belos edifícios que em tudo nos lembram as pequenas histórias que líamos quando miúdos, onde o pequeno Pinóquio passeava na sua inocência de madeira por uma bonita cidade de casas caiadas de branco com intromissões de madeira espalhadas em xadrez pela sua parede. As ruas, largas e sem lugar para automóveis, enchem-se diariamente de todo o tipo de músicos, rapazes de bicicleta, mulheres abraçadas a cestos de vime que acabam por encher de fruta, vegetais e ovos nos mercados do centro, belas raparigas alemãs sob o qual o atento, e por vezes furtivo, olhar Português se perde diariamente, pequenas esplanadas para fazer uma pequena pausa, talhos com as suas centenas de diferentes tipos de salsichas alemãs, jardins de cerveja com os seus milhares de distintos sabores. Pelo meio da cidade, um pequeno rio faz as maravilhas das pessoas que diariamente atravessam as dezenas de pontes que ligam a Sebalder Altstadt da Lorenzer Altstadt, mostrando em cada detalhe a beleza de viver numa cidade que abraça a natureza de uma forma elegantemente carinhosa. Árvores adormecem num rio onde cisnes, gaivotas e cómicas fulicas se divertem na sua labuta diária por peixe fresco, lado a lado com edifícios seculares que, apesar de destruídos pela guerra, foram restituídos a vida para fazer lembrar a todos que uma cidade não é o espelho daqueles que por vezes a escolhem como símbolo de um terror passado. Faz hoje um mês que o paraíso me levou como seu. Aos olhos dos poucos ou nenhuns que possivelmente lerão isto, ei-lo, pois então.

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