#31

Nürnberg, 29 de Novembro de 2007

A vida aqui no frio. O sol levanta-se às sete e quarenta e dois da manhã. E é por volta dessa hora que, já depois de uma ou duas chávenas de café me queimarem um bocadinho mais o céu-da-boca, me lanço ao vento que carrega nos seus três graus negativos um bombardeamento de agulhas invisíveis. Fora da lã, malhas e afins, dois olhos muito despertos, um nariz feito gelo e duas bochechas assombradas pela atmosfera glacial desta minha cidade das fantasias. No caminho para a faculdade, ciclistas enfrentam o frio enquanto a maior parte se desloca de dentro dos seus carros climatizados. Eu prefiro andar. Já vai para cima de um mês que não pego na minha bicicleta. Assim consigo sentir mais as pessoas, não as vejo como um borrão que cedo foge da memória. Da sala de aulas, o parque que aqui há um mês era do mais verde que alguma vez tinha visto dá agora lugar a um manto de gelo que quer ser neve. Neve, essa magia que por aqui só se mostra aos fins-de-semana, nunca cobrindo a cidade com um manto branco, porque as nuvens teimam em ser de pouca dura. O céu teima em continuar azul celeste e eu enfrento o medo deste pensamento que tenho na cabeça. Venha o mau tempo, quero ver Nuremberga vestida de noiva. Cinco horas depois, à saída da Faculdade, o tempo continua igual. Frio, muito frio. Espero que a Magda acabe de fumar um dos seus finos cigarros polacos e mando-me para casa para meter qualquer coisa à boca. Barriga satisfeita, curiosidade pela caixa de correio e pelas histórias da noite passada dos meus vizinhos, salto para a rua. Por natureza, não consigo ficar quieto. Os meus joelhos crepitam por movimento, as minhas mãos tendem sempre a encontrar um qualquer pedaço de papel ou brinquedo em que se possam entreter. Não consigo ficar por casa, é o que quero dizer. Por isso mando-me para a rua e percorro ao frio o caminho que há quase três meses me tenho habituado a percorrer. Viro à direita na minha porta, desço a rua deserta passando pelos carros estacionados em cima do passeio, o prédio feito de madeira, o terreno baldio do lado esquerdo. Corto para a rua de tijolo vermelho que ostenta, brincalhona, um sinal de recreio em cada um dos seus extremos, desço até à entrada do primeiro túnel por baixo dos caminhos-de-ferro, que ignoro. Continuo pela pequena subida, sempre ladeado pela via de bicicletas, até ao túnel final, aquele dos relógios atrasados que me leva sempre até à alegria encantada que é ver o labirinto das linhas electrificadas do eléctrico, a confusão do maior entroncamento da cidade, a primeira grande torre da cidade antiga, o início da muralha de Nuremberga, o deslumbre diário. Depois da passagem subterrânea que me leva até ao início da minha cidade, tudo é maravilhoso, uma tranquila azáfama que me deixa diariamente de rastos. Por todo o lado se cruzam bicicletas com os seus ciclistas enchouriçados em enormes casacos, turistas desprevenidos que muito batem ao dente, miúdos que deambulam em matilha com os seus casacos de couro e espinhos, cristas rosas e verde-esmeralda, o máximo de cervejas que a mão que não segura o ente querido pode transportar, colegas de trabalho que se encontram para um café num dos centenas de bistros da cidade, pessoas como eu que se limitam a andar e a ouvir qualquer coisa que o gira-discos portátil lhes queira dar. É inicio da tarde mas o sol já se começa a escapar, o frio subsiste e ameaça agravar a minha condição de rapaz friorento que gosta de andar enrolado em roupa quente.



Procuro o meu poiso capitalista junto ao Pegnitz, a empregada sorri com o meu alemão de sarjeta, devolve-me o especial de natal com nozes e caramelo que têm hoje para oferecer e o delicioso muffin de maçã e canela aquecido. Será que notou no meu arrepio enfadado quando o total final se iluminou na caixa? Pisco-lhe o olho, tomando partido da confusão de novas sensações que um gesto anormal confere a estas Alemãs de cabelo muito negro e olhos azul pérola e deixo-me afundar por cima de uma das pernas nos novos sofás da sala junto ao rio. É tempo de me perder. Há algo de celeste e enternecedor nesta coisa de não falar a língua do país onde estamos. Olhar e ouvir as pessoas, quase sempre sem as entender, leva-nos a prestar uma atenção excessiva à expressividade que todos adicionam às conversas, às mudanças de tons, aos olhares que fogem para a mesa ao lado, ao jeito cómico de pegar numa chávena maior que as mãos que a seguram, a forma sedutora e apaixonada de uns, maquinal e reflectida noutros, perdidamente triste noutros tantos. E depois, basta esquecermo-nos de que não falamos esta língua tão estranha, e a conversa começa a fazer todo o sentido. O trabalho não me correu muito bem, detesto isto que faço. Devias juntar-te ao meu escritório, ela conseguiu lá um lugar à pouco tempo e adorou. Já viste o gorro daquela miúda ali sentada ao canto, pergunto-me onde o comprou. Fui a Londres esta semana, não parou de chover, também foi assim quando lá estavas? Acho que estou apaixonado por ela, sabes? Mas não lhe posso dizer, está tão longe. Porque não lhe ligas? Acho que é isso mesmo que vou fazer. Olha, hoje encontrei um homem no eléctrico que não parou de conversar comigo, e acreditas que ele conhece o meu irmão? Não te esqueças de que ainda temos de comprar mais daqueles Lebkuchens deliciosos.



A noite já caiu à muito mas só agora, por volta das oito da noite, as lojas começam a fechar. Algumas estão abertas desde as seis da manhã. Despeço-me da minha cidade friorenta, das longas gabardines e das nuvens de palavras que saem para o ar gelado da boca de cada um, aceno um até já aos preparativos eternamente belos do Christkindlmarkt que vai começar já amanhã e, antes de ir definitivamente para casa, faço uma paragem numa das incontáveis bäckerei, padarias, desta cidade. Depois de escolhida a carcaça mais quente e escura da cesta, embrulho-a num saco de papel e encosto-a ao peito. Faço o caminho de volta até casa com o cheiro e o calor do pão acabado de fazer para me esquecer dos três graus negativos que agora fazem. Vendo bem as coisas, hoje não queria outra temperatura que não esta.

#30

Nürnberg, 27 de Novembro de 2007

ERASMISAR. Foi o que tive de fazer ontem, enquanto ouvia o S.C.I.E.N.C.E. aos saltos pelo apartamento. O Ben passou pela porta da casa de banho no exacto momento em que eu, em frente ao espelho, headphones extremamente colados aos ouvidos, dançava agora embalado a “Summer Romance”. Olhou-me de esguelha, sorriu e seguiu para a cozinha. Como bom vizinho que sou, fui pôr a música nas colunas do quarto e obriguei-o a dançar comigo. É que, deixem-me que vos diga, a semana que acabou estava a ter uma falha muito grave no que toca a Espírito ERASMUS. Era preciso ERASMISAR.



Trabalhos. O Cláudio falou no seu blogue sobre Procrastinação, a Nadya diz no seu Messenger que é a Rainha da Procrastinação e eu, como amigo de palavras difíceis de dizer que sou, tornei-me o Deus da Procrastinação. Ou o Jesus vá. Pronto, vocês entendem. Vai daí, tomei a minha atitude modelo em época de entrega de trabalhos – que por estes lados se resumem a apresentações de uma hora sobre os Recursos Humanos da Adidas ou do Plano Estratégico da Samsung – e pus-me a ver DVD’s. Duas séries e três filmes depois, estava pronto para o plano seguinte. Dormir. E depois de dormir veio o elaborar na confecção de jantar. E quando não havia nada para fazer, ia lavar pratos, colar coisas na parede, ordenar as garrafas de cerveja pelo código de barras, traduzir mil e quinhentas palavras do livro que andava a ler de inglês para português, dançar descalço pela alcatifa, ir ao ginásio e dar uns socos valentes no velhinho saco de box, dormir outra vez. E foi assim que se passou uma semana. No entanto, ontem o dia correu-me extremamente de feição. Se não vejamos. Acabei o meu trabalho em três horas, onde conversei mais do que trabalhei com o Kostya, um Ucraniano de Odessa extremamente simpático que partilha comigo esta coisa de “Scheiße, é mesmo bom estar aqui! É mesmo mesmo muito bom estar aqui! Mesmo! Estes Alemães são um bocado parvos não são? Logo vi”. Ora, tendo alguma coisa em comum, o trabalho foi feito sem pressas e com muitas gargalhadas pelo meio. Depois, a fantástica notícia de que vou ter quatro exames, aos quais – wow – preciso de passar, em três dias. Delicioso. Também dancei no quarto. Já vos disse isso, certo? E também vos disse que nevou? Porque nevou, nevou muito, e eu fui todo lampeiro, camisola da selecção envergada, calção e chinelos, upa upa para a rua porque está a nevar. Filmezinho, fotografias, a neve lá para de cair e eu volto novamente à já falada dança de alcatifa. Pela noite, cinco ERASMUS a ERASMISAR pelas ruas de Nürnberg até ao bar aleatório desta Segunda-Feira, estamos de volta ao teu bom humor, sempre essa ideia na mente, é para lembrar o motivo, é que hoje eu sinto-me vivo, e seja por que motivo for, por que motivo for, por que motivo for. É só mais um começo. (:

#29

Nürnberg, 22 de Novembro de 2007

Uma semana depois dos últimos escritos, abro o portátil e começo a escrever. O dia de hoje foi um regresso à atmosfera invernal de Nuremberga, agora recheada por uma onda de luzes de natal, decorações de azevinho, homens conversadores que vendem vinho quente pelas ruas e um pequeno festival céltico ali para os lados da Weißer Turm, no centro da cidade. São 16:50 e o sol já desapareceu há algum tempo. Os dias aqui são cada vez mais curtos, as paredes que separam o dia da noite tentam esmagar-me com o meu queixume de falta de tempo, habituado a ter mais luz para gozar as tarefas que gosto ou tenho para fazer antes da diversão banhada pelas estrelas. O frio acalmou, o termómetro marca agora sete graus, o suficiente para me permitir deixar a janela aberta enquanto vos escrevo, ouvir os barulhos desta cidade que me derrete. Mas mesmo assim, é com um sorriso que recordo o banho que tomei aí, no Atlântico, há apenas quatro dias. Já vos disse? É que estive em Portugal.



Quarta-feira, catorze de Novembro. O relógio desperta-me cedo para ir às aulas mas quando me levanto, não me apresso a tomar um pequeno-almoço que me deixe atento ao Prof. Thomson. Pelo contrário, espreito para a rua onde os primeiros flocos de neve do ano começam a pintar a cidade. Largo um suspiro amorfo, chateado com o facto de ir deixar Nuremberga no dia em que começou a nevar. Mas não há volta a dar-lhe, em poucas horas tinha de apanhar o comboio para Estugarda. Uma noite, madrugada e amanhecer depois, estaria de partida para o Porto. Enchi os sessenta e cinco litros da mochila até à rolha, tratei de não me esquecer de nada que me fizesse falta nos dias seguintes e mandei-me para a estação à hora de almoço. No comboio conheço o Dr. Heinz Weigold, um simpático senhor de sessenta e cinco anos, biólogo e professor reformado que me faz companhia durante as duas horas de viagem com uma simpática conversa em alemão. O meu alemão extremamente básico torna uma simples conversa numa montanha-russa de sorrisos e vergonhas inusitadas. A viagem é feita com uma paisagem pintada de branco, onde campos, pinhais e aldeias se escondem por baixo de um manto que me enche de vontade para saltar vagão fora e tentar ouvir da neve a explicação para este fascínio que lhe tenho.



À chegada a Estugarda, o nevão tinha atingido um tom épico. Os flocos eram enormes e irregulares, as crianças sorriam com a neve na mão, as ruas não resistiam aos feitiços dos pequenos cristais. A cidade recebeu-me como eu nunca teria esperado. Sempre que perguntei a alemães o que havia para ver em Stuttgart a resposta foi sempre a mesma, “Tens a Mercedes e a Porsche. É isso”. Pois bem, não é nada disso. A cidade não é muito grande, sendo até mais pequena do que Nuremberga, mas a atmosfera é muito cosmopolita. Por todo lado, lojas de estilistas de renome, pequenos establecimentos gourmet e, claro, uma infinidade de automóveis de gosto, deixam-nos com o espírito consumista nos píncaros. No entanto, um controlo afincado na carteira e a visita torna-se fantástica. Os alemães de Estugarda vestem-se bem, atraem-nos e, para complicar a situação, vivem na capital de um dos antigos reinos alemães, o que significa ter bem presente a sua quota-parte de edifícios majestosos como a Stiftskirche ou o Neues Schloß. Embebido no espírito nocturno das ruas comerciais que se misturam com as fantásticas obras de arte, lancei-me a caminho do Aeroporto.



Uma noite passada no Aeroporto tem sempre muito que se lhe diga. Ao chegar, por volta das nove da noite, fui fazer um pequeno reconhecimento de território. E por pequeno, entenda-se mesmo muito pequeno, porque o aeroporto de Estugarda, um dos hubs principais do sul da Alemanha não faz jus ao seu nome. Talvez do tamanho do Francisco Sá Carneiro mas com ainda menos movimento à medida que as horas vão flutuando no relógio, o aeroporto não tem muito por onde se lhe pegue, excepção feita às cativantes colunas em forma de árvores que sustentam o tecto do aeroporto e que lhe conferem um aspecto de floresta de aço, talvez inspirado pela proximidade à Floresta Negra. Encontrada a conclusão de que não havia muito para fazer, tentei dormir. Obviamente, graças ao meu eterno mau aspecto gadelhudo, vinte minutos depois estava a ser abordado por dois simpáticos cavalheiros polícias que me pediam uma identificação. Depois de entenderem que eu não constituía nenhuma ameaça assustadora para o catolicismo alemão, lá me deixaram a dormir deitado no banco corrido entre os terminais três e quatro. E foi depois de uma noite que ainda teve espaço para trocas de e-mails, conversas internéticas, uma paixão súbita pela loirinha que fazia tricot e trocas de palavras com quem passava, o dia abordou-me com mais um nevão que deixou o exterior do aeroporto completamente branco. Às nove da manhã o meu avião amarelo levantava voo. Lá dentro, um puto que era eu deixava-se derreter pela paisagem láctea que pintava o chão Alemão. Que país bonito este, mesmo visto lá de cima. No avião as saudades de Nuremberga já apertavam, com aquele nervoso miudinho de não saber o que esta gente estava a fazer, como estaria a minha janela, o meu rio, as minhas árvores e os meus patos pretos. Mas já não havia tempo para pensar nisso, o Douro estava à vista a dez mil metros de altura.



Voar é lindo. Toda gente que já teve essa oportunidade entende-me. Quem não teve, também. Aquele aperto maravilhoso de sabermos que não temos nada por baixo de nós, a visão das sombras monumentais do lado nascente das montanhas, os carros que lá em baixo se movimento vagarosamente pelas estradas sinuosas, os campos e lagos que nos enchem a vista e as nuvens, essas nuvens que nos levam ao lugar-comum de vermos algodão no céu. Voar é lindo. E para ser perfeito, temos de aterrar na nossa cidade. Por muito bonitas que as outras possam ser, não como fazer uma pausa no voo para apreciarmos a nossa cidade. O piloto do sete três sete amarelo fez-me esse favor. A abordagem ao Sá Carneiro é a mais bonita que conheço. Porque primeiro vem o rio, as suas margens sulcadas e as suas barragens, tão efémeras lá de cima. Depois vem uma ponte, outra, a Dona Maria e o seu marido, depois vejo a câmara e – ó meu deus, o que é aquilo – um enorme foguete verde ao seu lado, vejo o Dragão e a Casa da Música, a Alfândega e o Palácio, num instante que tem de ser muito pequeno tento procurar a Rotunda da Boavista e encontrar a minha casa. Encontrei, encontrei! Estou extasiado e não faz mal nenhum, deixo de me preocupar com o que deixei para trás, o Porto recebeu-me com a cor dourada que esta cidade tão bem abraça pelas manhãs, uma pequena bruma a nascer do Douro, a marginal, casas, campos, olha o novo IKEA, sustenham a respiração, agitação, trem de aterragem no chão, estamos de volta a casa.



Queria muito ter passeado pelo Porto no único dia que tinha para ver a cidade, mas a verdade é que não tive tempo. Depois de matar as saudades às Avós e às filhas, fui receber o meu primeiro presente. Peguei na bicicleta e parei algures no Campo Alegre para ficar envergonhado pela maneira como falo muito e pouco deixo falar. No entanto, soube deliciosamente bem, isso já ninguém me tira. Subi a Torrinha para rever aqueles três viciados agarrados aos seus chocolates. Uma troca de conversas contigo sobre a vida e contigo sobre a tua vida que eu às vezes queria ter a força para mudar, e lá vos deixei voltar para o chocolate. Resignado, subo mais um bocadinho para ter três agradáveis surpresas. Tu, tu e tu. Fizeram-me uma festa que me deixou com vontade de não vos largar mais. Sabem, é bom saber que deixamos marcas positivas nas pessoas. Sim, sabe muito bem saber que há quem se lembre de nós e quem realmente sinta a nossa falta. Vocês as três deram-me um bocadinho disso e só posso estar incrivelmente feliz com isso. Antes de adormecer, envolvido nuns lençóis que não me viam há três meses, fui ter contigo também. De manhã não estavas em casa, à noite acho que vi uma pontinha de olhos molhados. Vi? Olha não sei, mas sabe tão bem falar contigo e entender que nunca nos vamos conhecer a cem por cento mas vamo-nos sempre entender por um olhar só. Gosto mesmo de ti, sabes? E depois dizes-me coisas bonitas que me atraiçoam o peito. Gosto de ti. Gosto de vocês.



No dia seguinte mandei-me para o Algarve. Afinal, o objectivo da viagem era mesmo esse. Lá por baixo, alem de me deixar encantar pela pequenez de quinze dias e pelo estranho sentido de responsabilidade para com algo que me é tão estranho, tive ainda tempo de comer bem e dar umas braçadas na praia. Não podia ter corrido melhor, pois claro. Mas, o que interessava era que ia finalmente conhecer o puto que me vai deixar ainda mais Peter Pan. Deixem-me explicar.



És muito pequenino. És mesmo, mesmo uma pulguinha. Na imagem que guardo de ti cá dentro, estás vestido com uma roupinha verde, de olhos muito fechados num sacrifício de aguentar a confusão deste mundo onde te meteste, com as duas mãos muito agarradas aos meus dedos, alguns barulhinhos imperceptíveis para me mostrares que estás enternecido pelo sono que te é oferecido durante as vinte e quatro horas do dia, o cabelo é farto como o do teu irmão e humedecido pelo tempo que passas deitado, a barriguinha dá-te algum choro de vez em quando mas não faz mal miúdo, já passou, já passou. Agora dorme. Um dia vais ser grande e vais-me ensinar muitas coisas. Eu também te quero ensinar algumas, quero ver-te a crescer, achas que posso? Quero que te rias de mim quando entenderes que não sei jogar futebol, quero dar-te a ouvir o grito antigo do Jim e a guitarra do Bob e do Neil. Ah, e quero tirar-te o sotaque algarvio. Olha, esquece lá isto tudo, quero é que sejas o miúdo mais feliz do mundo, o que achas? Vai correr bem.



Voltei um bocado chateado por entender que não o vou ver crescer todos os dias. Mas não tenho culpa disso. Ou tenho? À noite, depois de passar o fim de tarde arrumar as coisas, fui ter com vocês todos. Uma segunda conversa, interrompida por um aquecimento para o jantar sozinho com uma garrafa no banco de trás do carro, os abraços e sorrisos abertos à chegada, as histórias que pediam para ser contadas, a mesa de jantar e a corrida aos finos, os finos, o senhor que não trazia os finos e os finos outra vez, o eu não gosto de cerveja, a francesinha que ficou a meio, a boleia que o podia ser todos os dias até o sempre acabar, o até já a vocês que me vêm visitar daqui a uns dias e a vocês que tiveram de ir para o outro lado do rio mais cedo, a chegada ao palácio e a música cheia de racking, o gato pára-quedista e aquele abraço que se calhar só eu é que senti, as prendas que me deram e que me fazem sentir tão acarinhado, o até já que vais sozinha, eles têm coisas a tratar, as coisas tratadas, o até já musculado e o até já riquinho que custa tanto – olha, custa mesmo – o fim da noite no sofá das traseiras, um até já aos resistentes e uma boleia até casa contigo que te vou ver a Budapeste mal me chames.



Horas depois, já no Aeroporto, a tentar entender as saudades que uma mãe pode ou não ter do filho, o segurança do Sá Carneiro perguntava-me onde estava a minha camisola da selecção. Atarantado, abraço-me ao homem que não conhecia de lado nenhum. Também ele se lembrava de mim três meses depois. Lembras-te de dizer que já não me lembrava de chorar? Olha, desci as escadas rolantes até ao terminal com as lágrimas palermas a caírem dos olhos, com umas saudades inexplicáveis do que tinha cá e do que deixei aí, sem entender como posso ser tão indiferente às coisas quando as tenho nas mãos. Foram só três meses, achava que era pouco, mas não tinha ainda entendido como cada um de vocês me faz falta, como aquele meu jeito de vos picar e chatear é o meu modo de dizer como gosto de ti, de ti e de ti que não gostas de cerveja. É o meu jeito de passar por vocês sem questionar que raio de impressão deixo para trás, porque vocês já sabem que eu penso sempre o pior e isso não é maneira nenhuma de sentir as coisas. Pois foi naquele terminal que entendi que sou uma pessoa que gosta de sentir a falta das coisas, que gosta deste sentimento, e que decididamente não as sabe aproveitar quando as tem. Já no ar, a olhar para as nuvens mais bonitas que alguma vez vi, a perder-me na imensidão de uns Alpes cobertos de neve ou num lago de Geneva fascinante, ainda pensava em vocês. E sorria. A vocês todos, obrigado pela noite que me deram. Eu sei que não sou muito bom a dizer como vos gosto quando tenho a oportunidade, mas olhem, gosto-vos. Vemo-nos além, aí ou ali mais ao lado, não interessa. Vemo-nos aqui. Fava, que escrito lamechas, este.

#28

Berlin, 11 de Novembro 2007

São quatro e vinte da manhã. Em Nuremberga cai uma pequena morrinha que nos puxa para novamente para a cama. O alarme insiste nervosamente, obrigando os meus pés a tocar na alcatifa do meu quarto. Olho lá para fora e aprecio o escuro da noite. Da cozinha vem o som de gargalhadas de um dos meus vizinhos e dos seus amigos. Passam a noite entre cervejas, cigarros e muitas conversas. Gente porreira, penso enquanto quase entro por outro sonho dentro. Entendo que estou prestes a adormecer outra vez, agora sentado na borda do colchão, e levanto-me num salto que me leva directamente à cozinha para resmungar um bom dia que os faz erguer o cenho durante uns bons segundos. Banho tomado, saco pronto, vamos embora. Lá fora as pessoas aparecem todas ao mesmo tempo, com uma expressão ensonada na cara. A maioria à excepção dos condutores pouco dormiu. Os grupos dividem-se. O Dinesh fica com os Coreanos, o Jochen com os Espanhóis, o Matt com as Checas e o Irmão, e eu fico com o resto das meninas só para mim. As malas são atiradas para dentro da mala, os dedos das mãos tentam atabalhoadamente aprender a trabalhar com a menina do GPS, um CD pintado à mão vai parar dentro do auto-rádio. Pé na embraiagem, outro no acelerador, até amanhã Nuremberga.



São quatrocentos quilómetros de Autobahn que, em boas condições, se fazia em pouco mais de duas horas. No entanto o tempo prega-nos uma partida e oferece-nos durante os primeiros cento e cinquenta quilómetros uma tempestade de neve. Sim, o Português estava a conduzir um Mercedes na Neve. Os Broken Social Scene cantam-me que eu costumava ser um dos que estavam muito mal mas que eles gostavam de mim. Agora estou longe e não vou voltar. Ao mesmo tempo, milhares de flocos de neve têm o seu fim no meu pára-brisas, uma estrada de três faixas onde o alcatrão só em visto em parte de uma delas é iluminada por dois grandes faróis com direcção a sonhos mais altos. Os que não dormem vão conversando, à frente o carro do Dinesh prega-lhe uma partida de vinte segundos enquanto a traseira lhe foge para um lado e para o outro para um lado e para o outro. Assustador, mas felizmente nada acontecer. Aprendida a lição, começa a andar mais devagar no nevão. Quando a neve levanta temos a estrada só para mim. Sou só eu, a estrada e o acelerador. A experiência da Autobahn quatro meses depois de pegar num carro pela última vez foi qualquer coisa de especial.



À chegada a Berlim todos se empurram para terem uma vista melhor. Fizemos uma entrada por uma antiga zona a sul, na parte leste da cidade, a parte que era comunista. Berlim entra nos nossos olhos como uma cidade de chocolate que precisamos de consumir rapidamente. Dois dias não iam chegar para ver tanta coisa que imediatamente criava entre nós e a cidade uma ligação especial. A auto-estrada dá lugar a uma grande avenida ladeada por enormes árvores, que dá lugar a uma zona habitacional tipicamente comunista, com grandes passeios e prédios extremamente feios. Pela estrada passeiam Berlinenses, que não se podem confundir com Alemães, de rosto feliz, que se dirigem para as suas bicicletas para um passeio de Sábado ou para os seus carros, na maior parte dos casos os mesmos dos anos 80. Convém aqui dar uma pequena explicação sobre o que é Berlim no meio deste país Alemão.



Terminada a Segunda Guerra Mundial, a Alemanha foi dividida em quatro partes. Para salvaguardar a individualidade da enorme capital, a cidade de Berlim foi pelo mesmo caminho. Assim, em pleno centro da divisão territorial que calhou à União Soviética surgia outra divisão, com quatro partes de Berlim a serem divididas entre Soviéticos, Ingleses, Americanos e Franceses. Para impulsionar o crescimento da cidade, cedo os três países ocidentais uniram as suas forças para trazer Berlim de volta ao seu rubor pré guerra. Era uma cidade que já tinha dado origens a duas guerras mundiais. Pois a somar a isto, foi o palco do início e fim da Guerra Fria.



Em 1961, com a desculpa de manter a democracia intacta mas com o verdadeiro intuito de parar a onda de emigração para a Alemanha Ocidental, os Soviéticos criam uma barreira de cento e cinquenta e sete quilómetros, criada por dois muros separados por campos minados, fossos, arame farpado e redes electrificadas, vigiado minuciosamente por guardas da URSS. Durante vinte oito anos, famílias foram mantidas separadas, dezenas de cidadãos de leste perderam a sua vida enquanto tentavam escapar, contando-se pelos dedos as histórias de pessoas que conseguiram ludibriar os guardas do muro.



O resultado final do muro são duas cidades diferentes, que ainda hoje continuam a tentar encontrar-se. Com a queda do muro, a invasão capitalista ocorreu com velocidade na parte de leste, mas os seus habitantes não fugiram para a zona ocidental. Afinal, o que eles desejavam não era emigrar para o outro lado do muro mas sim ver o que era, entender o que por lá se passava. Hoje são visíveis por toda a zona a este da cidade as marcas deixadas pelo período comunista, enquanto a zona oriental é marcada por uma arquitectura extremamente ligada aos anos setenta e oitenta. No panorama do país, Berlim é uma das zonas mais pobres da Alemanha, onde é difícil arranjar emprego o que origina a uma baixa geral dos preços. Um bom contraste, depois de quatro meses a viver na Baviera, a parte que leva a economia do país às costas. Esta foi a Berlim que nos foi apresentada.



Durante a nossa estadia nevou imenso. Pela manhã e pelo fim da tarde a cidade cobria-se de branco, enquanto durante o dia o frio era uma constante. Nada que nos intimidasse a descobrir a capital Alemã. Da Pariser Platz, onde o Michal Jackson fez aquela proeza memorável com a sua criança até à Ilha dos Museus, passeamos por entre o famoso Brandenburg Gate, o clamoroso Memorial Judeu, a surreal zona onde estavam instalados os Bunkers de Hitler, um pouco do Muro de Berlim e o antigo quartel-general das SS. O Checkpoint Charlie e toda a sua história sobre as tentativas de fuga de oriente para ocidente, a Gandarmenplatz e a Babelplatz com a Universidade como pano de fundo, onde pessoas como Marx, Engel, Nietzsche ou Einstein estudaram e leccionaram. A imponente TV Tower, o segundo edifício mais alto da Europa a seguir à TV Tower de Moscovo, com o seu restaurante giratório, ou o fantástico panorama que o Reichtag nos oferece do topo da sua enorme cúpula de vidro.



À noite, com um frio de fazer bater o dente, as meninas queriam beber e eu queria conhecer a cidade. Em vez de me mandar sozinho pelas ruas da cidade, perguntei-lhes o que achavam da ideia de transformarmos a nossa Mercedes num Barmobil, uma espécie de Papamobil mas com a santidade do álcool a fazer as vezes do outro senhor. Destino aleatório no GPS e lá ia eu desbravar a cidade de Mercedes, enquanto no banco de trás elas se divertiam com a dificuldade de enfiar vinte centilitros de vinho num copo enquanto o carro se movimenta. Dentro do carro tínhamos formado o nosso próprio clube Berlinense, com direito a bebida, comida, o por vezes irritante fumo de cigarros, os risos descontrolados típicos de uma noite perfeita, muita música e dança que começavam sempre pelo condutor e os olhares que se acabavam sempre por perder pela magnificência de uma cidade que se de dia é monumental, à noite se liberta num mar de luzes que a mim tanto me relaxam o espírito. Se viram o Lost in Translation, e em especial aquela cena dentro do táxi na chegada a Tóquio, podem imaginar o nosso estado de espírito se lhe juntarem uma festa demente dentro das quatro portas.



Passou depressa, muito depressa. E ao chegar a casa, depois de devolver o carro na Europcar, sentia-me como se tivesse sido abanado por um mar de gente. Não queria estar aqui, queria voltar para o meio daquela confusão de ruas, luz e neve, queria voltar para dentro do carro e guiar mais um bocadinho que fosse, queria que esta gente toda se deixasse ficar por aqui e não fosse dormir. Foram só dois dias na capital Alemã, mas foram dois dias que mexeram comigo num jeito muito estranho. Deitado na cama, tento entender aquilo que fiz e dar-lhe algum sentido, explicar a conversa com a miúda da recepção ou o casal de namorados na pizzaria. Tentar entender aqueles flocos enormes de neve que me pintaram o casaco de branco e explicar porque é que mesmo ainda aqui estando, já sei que daqui a uns meses vou estar cheio de saudades destes sacanas todos que tenho aqui como amigos.

#27

Nürnberg, 9 de Novembro de 2007

Escrevi uma vez que apesar de gostar do Porto de uma maneira muito minha e extremamente bonita, nunca me senti bem a andar pelas ruas da cidade. Sentia-me parte da vida de todas aquelas mulheres baixinhas e vestidas de forma espampanante, de todos os homens com barriga de Super Bock que passeavam os seus egos pelos cafés da cidade, de cigarro no canto da boca e jornal distraído na mesa, sentia-me parte de todos aqueles miúdos que atiravam papeis húmidos pelos cilindros das canetas às mulheres baixinhas e sentia-me parte de todas as miúdas portuguesas alvo dos sons de apreço dos homens com ego, estômago e estímulo sexual avultados. Sempre que ia para o ginásio, lá no cimo da Constituição, sentia aquele barulho vindo do infantário e da escola primária muito meu, via as pessoas de olhar nervoso na paragem como muito minhas, atravessava as passadeiras nos perigosos vermelhos de uma forma que era minha, dizia olá às pessoas do ginásio e perdia-me em conversa com a Paulinha na recepção, a Sandra junto às máquinas, o António onde quer que ele estivesse a fazer o seu trabalho de manter o clube num brinco. E todas estas conversas, todos os sorrisos, as palavras trocadas e as frases sem sentido que muitas vezes me saem da boca quando não sem mesmo o que dizer eram todas coisas que saíam daqui de dentro como muito minhas. A Constituição é minha, o Marquês e a Boavista são meus, todas aquelas ruas, as avenidas e os quelhos que vão dar à baixa são indiscutivelmente meus. O homem que diariamente me pedia um euro para a sopa, a mulher desdentada que me mandava uns beijos apelativos, a senhora que achava que eu todos os dias precisava de um novo par de meias, o simpático empregado do café di Roma que insistia em me trazer o meu chocolate quente preferido. Até vocês, que eu pouco via, eram muito meus. Até tu, e tu e tu e tu, que me deixas-te de falar, ou com quem eu deixei de falar, não sei bem, és muito minha e muito meu, e muito minha e muito meu. O fumo a sair de uns autocarros, o vapor de água que saía de uns poucos, o barulho ensurdecedor do motor de todos eles, o som que em conjunto com aquele bater das ondas e da nortada nas pedras do castelo do queijo, do molhe ou em gondarém. Todos eram muito meus. O rio e aquela cor alaranjada que a ribeira lhe oferecia à noite, os simpáticos seres que nos queriam dar muita droga, os pouco simpáticos seres que nos atiravam com batatas, água e sabe lá Deus o que mais. Todos eram muito meus. O cinema e as pipocas no Arrábida, os jogos de futebol aos sábados de manhã, as corridas no parque da cidade e as tardes e tardes passadas em casa a fazer que trabalhava. Raios, como eram muito minhas. A cidade era mesmo muito minha. Escrevi uma vez que apesar de gostar do Porto de uma maneira muito minha e extremamente bonita, nunca me senti bem a andar pelas ruas da cidade. Deixem-me então mostrar-vos um pouquinho mais o que é isto de ser ERASMUS em Nuremberga.



Ontem tinha muito que fazer. Tinha mesmo muito que fazer. Mas estava nervoso de mais, não conseguia estar quieto e ficar sentado ao computador estava-me a destruir as pequenas ligações, uma por uma. Então peguei na minha música e na minha máquina e fui lá para fora. O Martin Luther King começou a discursar. Depois veio a guitarra do Paulo Furtado a que logo se juntaram as vozes da Selma e da Raquel (quem diria, que um dia…). Soul city, here we go! A música apanhou-me de surpresa, já há uns tempos que não andava com a febre de Wraygunn. Primeiro saltei para dentro de um autocarro. Depois troquei por um eléctrico. Terminadas as pequenas viagens, feliz por não ter sido multado à laia de não ter bilhete, comecei a andar pelos 5 kilometros de avenidas que dão a volta às muralhas da cidade. Perdão. Não andei. Algumas pessoas olhavam para mim, até os filhos de uma grandessíssima prostibulária que conduziam os seus porsches gt3 (sim, aqui há disso) ficavam a olhar para mim. Depois lá entendi. Não andava. Dançava. Não é normal ver alguém a dançar pela rua, a soltar as mãos e a dar larga aos saltos entre os dois pés, a cantar feito desalmado e a sorrir para as meninas bonitas que passam do alto das suas bicicletas encantadas. Pois olhem, eu ontem dancei muito, e ainda eram apenas três da tarde. É a mais pura das verdades. Eu posso gostar muito do Porto, mas nunca me sentirei tão livre ao ponto de dançar como um louco que sou pelas ruas da cidade. Aqui não interessa, quem são eles se não pinturas no quadro mais bonito onde alguma vez vivi? Entretanto fez-se tarde, o que é o mesmo que dizer que passaram as quatro da tarde. O sol pôs-se, as iluminações de Natal acenderam-se, eu sentei-me ao frio a ler, enquanto o suportei. Depois enfiei-me no meu sofá, enrolado em mim e aquecido pela grande chávena de café e pelo chocolatinho que o simpático empregado continuamente me insiste em dar. Dentro do Starbucks, já não havia Wraygunn mas a Nina Simone fazia-me sentir ainda mais em casa com a sua sensualidade de me levar aos píncaros. De chávena quente na mão, olhei absorto por entre os flocos de neve pintados nas vitrinas o espírito quente de toda aquela gente a largar os seus empregos, a comprar três pequenas salsichas dentro de um pão, vinho quente, café, cappuccinos, gingerbread ou o que mais for, a encontrar os seus amigos, a abraçarem-se e a contarem as peripécias do dia. Aqui não tenho ninguém a quem contar as minhas peripécias. Alias, não tenho em lado nenhum a não ser neste espaço, não gosto assim tanto de estar com pessoas, verdade seja dita gosto de ser um bichinho do mato com o meu espaço para observar. Mas esta sensação de liberdade que sinto para qualquer lado que vou faz-me não pensar muito no como era estar aí desse lado e questionar-me se quando voltar será ou não diferente. Aqui posso saltar, posso sorrir a toda gente e esperar sorrisos e ares aparvalhados como resposta. Não faz mal, sou livre, mesmo muito livre. E tu?! Já gritaste alguma coisa hoje?

#26

Nürnberg, 4 de Novembro de 2007

Olha, não sei o que escrever. Pronto, está dito. Dou voltas e voltas e não sei o que te escrever. Quero adoptar um tom confiante, emocional, paternalista, pateta, brincalhão, comedido, alegre, excitado. Os meus dedos escrevem palavras soltas no ar, por cima do teclado, estão irrequietos, não os consigo parar. Penso nos quase três mil quilómetros que me separam do sul de Portugal e penso como há coisas maravilhosamente injustas. Vejo-te aqui à minha frente, estás a dormir. Uns lábios perfeitos, um nariz muito pequenino, dois olhos fechados que me sussurram um «não me toques». E eu não te toco, porque estás longe e eu não te posso tocar. És o melhor do mundo, sabes disso não sabes? Não deixes que te digam o contrário. És o melhor do mundo.



O meu irmão chama-se Gonçalo. É a pulguinha mais adorável que existe neste planeta, e é muito meu. Não fiz nada para o ter e, no entanto, é a coisa de que mais me orgulho nesta vida. Hoje sinto-me vaidoso. Muito vaidoso. Também estou orgulhoso deles, que me devem achar apatetado sempre que me lêem por aqui, a dizer estas coisas muito não-minhas. Mas não faz mal, tenho orgulho em vocês, muito, entendem? Agora, façam-me um favor, e tratem bem dessa coisa perfeitinha que têm aí nos vossos braços. Prometo que vou ser um bom irmão mais velho. Bem-vindo, miúdo.


Bim bom bim bim bão bum bim bom bim bum bão, quem bate à porta do meu coração? Bim bom bim bim bão bum bim bom bim bum bão, quem pôs um doce na minha canção? Vejo uma frota de barcos de açúcar, será que o mundo vai ser salvo assim? Ó meu menino, ó meu capitão, o tempo é louco, o céu é oco, mas vale tanto quanto o teu espanto, sou o teu espelho cantor, ho-o-o, ha-a-a, hi-i-i, … Ó meu menino, meu capitão, quando cresceres, se ficares tonto, dou-te um desconto, és cá dos meus. Estou bem em crer que o nosso amor vai ser bom, já é bom, vai ser bom, já é bom, vai ser bom, já é bom.

#25

Salzburgo, 1 de Novembro de 2007

A noite das bruxas ainda ia a meio quando acordei. Enquanto tomava o pequeno-almoço e deixava o ar gelado da madrugada entrar pelo meu apartamento dentro através da janela aberta, três vizinhos munidos de aterradoras serras eléctricas e muito álcool no sangue atiravam o meu nome para dentro do quarto, pedindo para lhes tocar algo na guitarra que os preparasse para uma reconfortante noite de sono. Depois de em vão lhes tentar explicar que não havia nenhuma festa em minha casa, que estava acordado mas que ia sair dentro de minutos em direcção a Salzburgo, deixei-os nos seus delírios de Jack o Simpático Estripador e fui preparar algumas sandes, enfiei tudo no saco e esperei que a Nadya aparecesse com o seu olhar ensonado de menina ansiosa por conhecer o que aquela cidade nos ia reservar. Que dia bom, foi este.



Estar na Estação de Nuremberga por volta das cinco da manhã trouxe-me óbvias recordações dos fins-de-semana no Oktoberfest, das correrias loucas para não perder o comboio, dos passageiros ensonados que tentavam adormecer por entre as nossas conversas animadas tanto pela adrenalina como pela cerveja. No entanto, as semelhanças ficam-se mesmo pelo número do comboio. A viagem até Salzburgo iria durar quatro horas e meia, com quarenta minutos de espera entre ligações em Munique. Refastelados no comboio, iniciamos uma conversa deliciosa que iria durar um dia inteiro. Sou uma pessoa que preza tanto o silêncio como uma boa conversa. Não me chateio se estiver sozinho, mas tão pouco me irritam pessoas que, como eu, falam pelos cotovelos. Há sempre um charme especial em ambos os casos. Bom, só pelas conversas, o dia já teria valido a pena. Mas houve muito mais.



Chegar a Munique às seis e meia de uma manhã de Outono significa encontrar uma cidade adormecida, confortavelmente envolvida pelos cobertores de um forte nevoeiro que esconde o céu bem azul que nos iria acompanhar pelo resto do dia. Copo de cartão com algum café na mão, plataforma de partida apontada, quarenta minutos para conhecer um pouquinho mais da cidade. Rumamos na direcção contrária ao centro, a um canto, três punks dormem envolvidos pelas latas vazias, os seus cães olham-nos desconfiados, cheiram a nossa vontade de aproveitar o dia ao máximo, sorriem-nos do fundo da sua alma de cão pachorrento. Quanto mais andamos mais a cidade fica deserta, mais o nevoeiro se adensa, encobrindo as modernas construções, as linhas do eléctrico, a bela catedral e as pequenas casas que sobreviveram à guerra e que emprestam o seu charme a uma enorme zona residencial nos arredores da estação. Os quarenta minutos passam a voar, rapidamente apanhamos o comboio para Salzburgo. Áustria, aqui vamos nós.



Salzburgo recebeu-nos de braços abertos. Já habituados ao frio, passeamos vagarosamente pelos cantinhos escondidos da cidade, maravilhamo-nos com os enormes jardins do Museu do Barroco, perdemo-nos pelas pequenas ruas comerciais, onde apenas as casas de chocolates se encontravam abertas, pasmamos com os fantásticos letreiros das lojas, tipicamente adornados por detalhes verdes e dourados como só os lojistas desta região da Europa sabem ter. Vamo-nos meter por estas pequenas arcadas, entrar naquela igreja, experimentar este chocolate, e aquele também, comprar dois bretzels estranhamente confeccionados com vegetais, deliciosamente confeccionados com vegetais, experimenta este chapéu, repara como aqui está escrito Austrália em russo e não Áustria, risos, covinhas no canto dos sorrisos, espanto pela enorme fortaleza que vigia toda a cidade, encanto pela vista que dela temos, passinhos de criança sobre as milhares de folhas caídas sobre todos os passeios da enorme reserva florestal. Vinho quente, um cão que repete o hábito de rebolar na relva e sacudir o que fica no pêlo para cima das donas, um pequeno desvio inusitado e o deleite perfeito com a vista para uma montanha que se ergue do nada em direcção aos seus dois mil e quinhentos metros de altura.



Oito horas depois estamos exaustos. A conversa continua, saltando de viagens por uma Europa encantada para Filmes sobre pessoas encantadas pela Europa, de hábitos de cada um para as dificuldades sentidas em dizer “Cão” ou “Hör Auf!”, das enormes saudades de casa para as memórias de um casamento em Moscovo e um divórcio em Londres. O sol põe-se atrás das montanhas, o chá aquece-nos as mãos, o comboio vai partir dentro em breve. Fica a recordação de um dia delicioso, de uma companhia inesperada e de uma cidade que encantou todos os que a visitaram hoje.



No comboio, todos os passageiros têm as suas máquinas nas mãos, deliciados com a arquitectura requintada da cidade em contraste com o intenso amarelo e vermelho das folhas que subsistem nas árvores austríacas e que lhe conferem um ambiente único. Eu, encostado ao frio vidro do comboio regional, esboço a memória cliché da minha cidade. Porque é para mim uma verdade inegável.



Quanto mais viajo, mais valor dou ao meu Porto. À sua cascata de casas que rebolam pela Sé em direcção às moedas encantadas no fundo do Douro, à ingenuidade das suas pessoas, à sujidade e ao frio granito. Fecho os olhos e sorrio. Vejo-te dia quinze, se me deixares.

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